A ampliação da Escrevivência para a academia e o convite para povoar outros espaços

A ampliação da Escrevivência para a academia e o convite para povoar outros espaços

Por Camilla Costa Gonçalves* e Danielle Teixeira Tavares Monteiro**

As experiências no estudo da memória, vivências, escrita e academia nos permitiram perceber como a normalização dentro do mundo acadêmico podem engessar nossa grafia, nossas rotas de pesquisa e até influenciar em resultados obtidos – ou buscados para confirmar uma hipótese.

A professora do Departamento de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Fernanda Felisberto, discute em seu texto “Escrevivência como rota de escrita acadêmica” sobre os obstáculos que são impostos à escrita que não firma um compromisso com a neutralidade. A professora apresenta uma prática que busca trazer mais possibilidades frente aos sentimentos de desqualificação que são frequentemente experimentados em situações de escrita acadêmica.

Neste sentido, Felisberto defende que o orientador esteja em uma posição de parceria com seu orientando, prezando por uma relação em que o professor não seja um elemento que contribuirá para a eliminação das vivências do sujeito que escreve. O que deve também ser um desafio para o orientador, tendo em vista as próprias normalizações pelas quais ele passou. A autora cita Anzaldúa (2000) para dizer sobre esse desafio: “Ainda não desaprendi as tolices esotéricas e pseudointelectualizadas que a lavagem cerebral da escola forçou em minha escrita” (p. 229).

Para traçar novos caminhos, é necessário que espaços acadêmicos sejam povoados pelo reconhecimento da produção de pessoas que, historicamente, foram negadas a falar. Felisberto (2020) afirma que este movimento é uma “reparação epistemológica” e a partir dela podemos caminhar rumo a decolonialidade dos saberes, privilegiando e construindo novos métodos.

Nesta longa estrada em construção, alguns marcadores teóricos como a “Escrevivência” de Conceição Evaristo já nos permite caminhar a certa distância de uma ciência que reivindica a neutralidade do pesquisador. A partir de outros métodos, como o memorial, citado por Felisberto, é possível traçar diálogos entre as pesquisas e as vivências autobiográficas que se enlaçam com os temas de pesquisa.

Fernanda Felisberto abre uma nota para um acontecimento ocorrido concomitante a escrita de seu texto: o assassinato de João Pedro, de 14 anos, que vivia na comunidade do Salgueiro, no Rio de Janeiro (2020). Sua morte foi consequência de ações da polícia civil e militar na região. Por uma infeliz coincidência, me lembrei de uma adolescente trans que foi exposta por um vereador de Belo Horizonte nesta semana após a utilização de um banheiro feminino em uma escola da cidade.

Nesta situação o discurso conservador cristão a define como uma transgressora de normas e ignora de forma desonesta as suas experiências de vida. Ainda hoje, os espaços de fala sobre as vivências da minoria, nesta situação falamos de pessoas transgênero, são restritos, o discurso autoritário e normalizador ainda vence. Conceição (2005) defende a escrevivência como um espaço onde: “Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido” (p. 6).

É necessário lutar por espaços de pluralidade de discursos legítimos, onde os sujeitos possam relatar suas vivências a partir de um corpo que sente, como propõe Conceição. É preciso sair desse lugar que fala que aponta para pessoas como um “simples” objeto de pesquisa, de julgamentos e especulações. A escrevivência como marcador teórico é essencial para uma academia decolonial mas também pode ser ampliada para outros espaços e discussões fora desse contexto, favorecendo assim a legitimação de diversas formas de existir.

Referências:

Duarte, C. L. Nunes, I. R. Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Felisberto, F. Cap. 10. – Escrevivência como rota de escrita acadêmica. 1 ed, Rio de Janeiro: Mina comunicação e arte, 2020.

*Camilla Costa Gonçalves: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.

**Danielle Teixeira Tavares Monteiro: Assistente Social, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pela Universidade de Coimbra – Portugal, psicanalista e escritora.

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