Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle

Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle

Por João Gabriel Bicalho Almeida* e Rafael Soares Mariano Costa**

O presente texto constitui uma resenha do artigo intitulado “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle” com objetivo de resgatar este importante trabalho de Deleuze, que é ainda muito atual e nos ajuda a pensar nossa sociedade.

O texto é sistematizado em três principais pontos. O primeiro concerne à formulação histórica acerca da passagem das sociedades disciplinares, descritas principalmente por Foucault, para a sociedade do controle. O segundo ponto desvela sob qual lógica opera essa nova forma de dominação e o ponto final disserta sobre a diferença entre os dois modelos e o que Deleuze (1990) chama de programa para uma novo tipo de sociedade.

Primeiro ponto: histórico

As sociedades disciplinares, conceito cunhado por Foucault, possuíam como característica principal a regulamentação da vida dos sujeitos por meio de instituições disciplinares que o colocavam sob o jugo de um molde, em um prescrição comportamental. Os locais de convívio como a família, escola, caserna e a fábrica formataram o cidadão europeu do século XIX, sendo, portanto, instituições de formação. O controle sob o corpo era exercido por algo externo ao sujeito que o obrigava a manter certa postura, pautando o tempo e o comportamento: “Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares” (p.1).

Assim, confinar era a palavra de ordem. Confinar para produzir (fábrica), confinar para servir a nação (caserna) ou confinar para educar (escola). Não casualmente, Foucault se debruça sobre o conceito de panóptico e sobre o modelo das prisões em sua obra “Vigiar e Punir” (1975). Deleuze anuncia, assim como o filósofo citado anteriormente, a crise dessas instituições e a superação desse modelo em um movimento histórico de instalação de novas forças, principalmente pós segunda grande guerra, não anunciando a “boa nova”, mas sim o surgimento de outra maquinaria de domesticação dos corpos, a sociedade do controle. Não se trata aqui de dizer qual das duas formas é mais vil, mas de notar nas palavras de Deleuze as “as sujeições e as liberações de cada modelo” (p.1).

Segundo ponto: lógica

Nesta perspectiva há uma lógica no controle que não está ligada necessariamente à estrutura onde esse confinamento se passa, mas diz de uma forma de pensamento, um meio, uma “moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (p. 2). O autor traz como exemplo os salários, que em uma fábrica reflete a estrutura de produção, já na lógica empresa é algo que muda constantemente, que reflete também essa nova concepção. O salário passa então a ter características variadas, passando por desafios, metas para seu cálculo.

A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa (p.3).

Para esse modelo funcionar a tecnologia se ajusta a esse enredo, saindo de uma produção de tecnologias precisas e simples para as fábricas, para tecnologias que misturam demandas sociais de serviços e vendas. O marketing passa a ser o centro das atividades, gerando demandas de novos produtos e serviços de natureza fugaz. Haverá sempre um novo, um melhor, algo para substituir o anterior.

E com a produção voltada para nessa lógica, saímos de um modelo de concentração e um confinamento nas estruturas de produção, para um modelo de vivências diluídas, que diz gerar liberdade, mas gera um endividamento e um distanciamento enorme entre as formas de sobrevivência, renda e trabalho.

Terceiro ponto: programa

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal (p. 4)

O autor conclui o texto trazendo os riscos desse sistema é a aplicação de mecanismos socio-técnicos em todos níveis da vida social. Nas escolas, por exemplo: “as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade” (p.4).

Conclusão

O contexto neoliberal é delimitado por um modelo de controle que tem como fundamental intervenção a alteração de processos de subjetivação por meio da promoção de discursos de patologização dos sofrimentos, de auto superação e cumprimento de metas e auto regulamentação da própria forma de viver, como num “vocêS/A”, é o triunfo do modelo empresarial. Safatle (2021), descreve o modus operandi do neoliberalismo como uma forma de engenharia social que visa a despolitização dos conflitos sociais e da luta de classes, visão que combate a retórica popular sobre o neoliberalismo de que as intervenções seriam apenas de cunho econômico, afastando Estado e economia, uma tecnificação de tudo onde o que importa é a gestão ótima de todos os recursos, apartando os fatores sócio políticos do âmbito do trabalho.

Tendo em vista a perspectiva descrita acima, uma pergunta há de ser feita, já que não se trata de temer ou esperar pelo pior, mas sim buscar formas de liberação e “novas armas”(p.1) assim como aponta Deleuze no início de seu texto. Quais as formas de libertação desse modelo? Uma das possibilidades, se encontra na mobilização do sofrimento, das demandas e das questões dos coletivos. O fortalecimento de movimentos históricos, como o sindical, em uma busca por uma repolitização frente ao modelo de controle vigente que os tem sucateado, é uma dos possíveis movimentos de criação de resistência frente ao nefasto modelo de empresariar a vida cotidiana. Renovar o movimento sindical, e reunir as forças políticas para sua reestruturação aponta em direção a um revalorização das lutas coletivas, que fazem frente ao processo de desvalorização e despolitização do trabalho, ambiente eminentemente político.

Referências:

DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle. L’Autre Journal. Paris, p. 1-4. maio 1990.

SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, Vladimir; DASILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021. Cap. 1

*Graduando em psicologia pela PUC Minas e integrante do Grupo de pesquisa PsiTraPP.

**Doutorando em Psicologia pela PUC Minas e integrante do Grupo de Pesquisa PsiTraPP.

 

Deixe uma resposta