A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral

A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral

Por Gabriel Silveira Barbosa* e Mara Marçal Sales**

O presente texto se propõe a ser uma resenha do primeiro capítulo (“A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral”) do livro organizado por Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian Dunker de nome “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”.

O capítulo escrito por Vladimir Safatle tem por objetivo analisar as origens, constituição e manutenção de um modelo econômico pautado sobre pressupostos morais-psicológicos, tendo o neoliberalismo como sua expressão apoteótica e contemporânea: para tal, o autor subdividiu o texto em subtópicos que abordam desde a introdução ao tema da fatídica “economia moral” às expressões e consequências na subjetividade humana e as suas implicações no modo de organização da sociedade.

O psicanalista fundamentalmente visa edificar três momentos na explanação de sua tese: (i) a contínua e pontual inserção de aspectos valorativo-psicológicos no âmbito da política e economia; (ii) os fundamentos político-estatais necessários para o desenvolvimento desta nova forma de organização e por fim (iii) as implicações subjetivo-singulares de uma ‘política dos afetos’.

Para elaborar a argumentação do primeiro ponto, Safatle utilizou-se de dois pontos principais, sendo: a amálgama entre moral, psicologia e economia fornece mecanismos da eliminação da contradição, dado que quem recusa os pressupostos econômicos do neoliberalismo não só discorda no plano econômico como é considerado “principalmente uma falta moral” (SAFATLE, 2019, p.14). Isto implica que a crítica, os modos de subjetividades contrários são relegados à condição do patológico. Institui-se, portanto, um cenário político onde não mais as justificativas são embasadas epistemologicamente, mas através de postulados ético-morais: “É cada vez mais evidente como lutas políticas tendem a não ser mais descritas a partir de termos eminentemente políticos, como justiça, equidade, exploração, espoliação, mas através de termos emocionais, como ódio, frustração, medo (…)” (SAFATLE, 2019, p.15). Finalmente, o que se desenha é um modo de operar onde a política se ‘afeta’, (re)direcionando o escopo para uma confrontação ofensiva, ao invés de lógico-argumentativa.

Em segundo lugar, o psicanalista parte para a discussão sobre o lugar do denotado “Estado total neoliberal” e os caminhos tomados para a implementação da sua hegemonia. Acima de tudo, o autor defende a tese de que para o neoliberalismo ser efetivo, deve acontecer com o auxílio de uma reformulação de ideais e com uma presença expressiva da instituição estatal. O que deve acontecer são “intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social” (SAFATLE, 2019, p.18). Como supracitado, o processo neoliberal, por meios psíquico-morais visa eliminar a contradição, construindo uma sociedade apoiada nos pilares do empreendedorismo, livre mercado e produtividade. Tais princípios são elevados à categoria de inviolabilidade e são divinizados, manipulando os interesses e formas de individuação dos sujeitos. O postulado “Estado total neoliberal” deve, por essência, mobilizar tudo e todos os aspectos da vida humana, “despolitizar” (SAFATLE, 2019, p.18) a população e hegemonizar a aceitação dos pressupostos capitalistas.

Por fim, eis o terceiro ponto indicado no texto para a consolidação do neoliberalismo como projeto econômico-moral: como este modelo de subjetivação segue um modelo econômico delineado pela produtividade e funcionalidade. Finalmente, há de se justificar o elo singular de uma política neoliberal baseada na afetividade e moralidade: se constrói, portanto, uma narrativa * em torno* do discurso do desejo do sujeito, como citado no texto, uma “racionalização empresarial do desejo” (DARDOT, LAVAL, 2010, p.440, apud SAFATLE, 2019, p.23). A necessária engenharia social proposta no panorama político neoliberal se insere na perspectiva particular através de meios de controle de um “design psicológico” (SAFATLE, 2019, p.23), onde o principal objeto e objetivo é o controle e direcionamento do desejo do sujeito. A prioridade tornou-se solidificar um discurso ideológico que regrasse o indivíduo pela ótica empresarial de funcionalidade e produtividade, apropriando-se de uma perspectiva mais psicologizada. A consolidação hegemônica do modelo empresa nas relações humanas proporcionou uma forma de cisão no sujeito, cisão que de forma alguma se deu de forma pacífico-voluntária, aliás, demonstrou ser uma forma de violência simbólico-afetiva. Neste panorama a questão do sofrimento é ultimamente anunciada:

Pois, para serem realmente internalizadas, tais disposições de conduta não deveriam ser apenas ideais normativos. Elas deveriam também reconfigurar nossa forma de compreender e classificar os processos de sofrimento. Não basta gerir o centro, há de se saber gerir as margens, configurar as formas possíveis do afastamento da norma. (SAFATLE, 2019, p.25)

Em suma, é preciso que sejam discutidos os impactos de uma compreensão de mundo neoliberal e seus desdobramentos. Cada vez mais sofremos os impactos de um ‘Zeitgeist’ onde os direitos, desejo do sujeito, saúde mental esvanecem na ótica. Visão de mundo esta que permeia todas as esferas da vida humana e fundamenta as práticas político-econômicas. Numa fragilidade programada, a sociedade pendula entre o sofrimento individual e a (aparente) falta de saída para tal problemática. Em tempos onde a produtividade adquiriu o caráter de atividade panóptica, o sujeito se insere em narrativas ideológicas onde o neoliberalismo desassocia a violência que ele próprio produziu na cisão do desejo do sujeito necessária para que os pressupostos econômicos continuem a fluir.

Referências:

SAFATLE, Vladimir; DA SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. São Paulo: Autêntica, 2020.

*Gabriel Silveira Barbosa, estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, monitor do Laboratório de Psicologia do Trabalho e Organizações da Praça da Liberdade- LAPOT PUC Praça e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp

** Mara Marçal Sales, psicóloga, Mestre em Psicologia Social (UFMG), Doutora em Educação (UFMG), professora adjunta IV da Faculdade de Psicologia da PUC Minas. Coordenadora do Laboratório de Psicologia Organizacional e do Trabalho da PUC Minas, unidade educacional Praça da Liberdade e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais- Psitrapp

Deixe uma resposta