Escrevivência: sentidos em construção – Maria Nazareth Soares Fonseca

Escrevivência: sentidos em construção – Maria Nazareth Soares Fonseca

Por Camilla Costa Gonçalves* e Danielle Teixeira Tavares Monteiro**

O termo escrevivência é utilizado por Conceição Evaristo desde 1995, a partir de sua dissertação de mestrado. É um sentido construído pela própria autora que, no momento das primeiras utilizações, não tinha intenção de instituir um conceito. No entanto, a escrita de vivências de Evaristo foi e é tão significativa que hoje podemos tomar a escrevivência como um conceito que nos auxilia a escutar a voz dos lugares silenciados.

O escrever sobre o viver de Evaristo é: “uma estratégia que rasura a ordem legitimada pela figura da ‘Mãe-preta’ que conta ‘histórias para adormecer a prole da casa-grande’.” (FONSECA, 2020, p. 60). A partir deste sentido, compreendemos que a escrevivência é antes de tudo uma negação do lugar de passividade imposto à mulher negra, de contar realidades que não a pertencem. Em movimento contrário, a escrevivência se constitui na narração de uma história a partir de um outro lugar – que é o lugar da mulher negra e que ainda é considerado um lugar de alteridade.

Escutar esta alteridade é um exercício de enxergar o mundo a partir de um outro olhar. As histórias de personagens negros que são narradas por pessoas brancas, geralmente, retratam a pessoa negra em lugares de dor e sofrimento e as demais vivências são negadas. Onde estão as relações de pais, filhos, namorados e namoradas? Como Caetano nos canta: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” – é preciso escutar essa voz silenciada e observar seu movimento de fala por si mesma. Sobre este aspecto Fonseca afirma: “A literatura produzida pelas escritoras negras assume um procedimento literário que funciona, muitas vezes, como assunção do que ficou recalcado e silenciado pela História.” (2020, p. 61).

Quando lemos Conceição nos deparamos com uma história individual mas que está enodada com a história coletiva. As experiências de Ponciá Vicêncio, por exemplo, em partes são passadas no campo, onde a família trabalhava. Este contexto é marcado por relações de dominação onipresentes. Esta narrativa não possui como eixo central esta vivência mas neste sentido podemos percebê-la na história coletiva. Fonseca (2020) afirma que: “O termo ganha uma dimensão histórica porque questiona e subverte o ‘lugar silenciado que as autoras desejam reparar’.” (p. 64).

Considerando o caráter histórico do termo, podemos nos apropriar dos sentidos de escrever-viver para narrar outras vivências que, não necessariamente, dizem respeito à mulher negra. Mas que também são experiências e conhecimentos pouco visitados na literatura ou mesmo na academia, sempre observando e respeitando o termo escrevivência como um espaço de voz das mulheres negras, conforme é pontuado no texto de Fonseca (2020): “A escrevivência seria um processo de escrita literária de autoria negra feminina voltado à apreensão das demandas da mulher negra.” (p. 63).

Fonseca compara a Escrevivência com o conceito de Marronagem que ao vir para a literatura também assume uma escrita que faz parte da pele-memória. O termo Marronagem foi desenvolvido por escritores do Caribe e se refere aos movimentos de resistência que os negros escravizados instituíram para se opor a exploração no plantation. Essas resistências se davam, por exemplo, a partir da fuga para lugares de difícil acesso e instituição de comunidades negras – movimento semelhante ao dos quilombolas no Brasil.

Sobre as semelhanças entre os termos, a autora do texto pontua que: Nessa trajetória, o próprio gênero romance passa a significar uma experiência criativa em que o relato assume o compromisso de reler a História a contrapelo e de criar novas estratégias para fazer brotar do chão da cultura um manancial de vivências sufocadas e memórias negras esquecidas.” (p. 69). Neste sentido, aprendemos com Conceição que é necessário voltar-se: “[…] às memórias traumáticas e aos relatos de sobreviventes de processos de desumanização que se mostram persistentes na sociedade brasileira até os dias de hoje.” (FONSECA, 2020, p. 65). Dar vida a escrita que se assemelha a escrevivência na academia é uma luta em prol daqueles que historicamente foram impedidos de falar.

“A força dessa luta está presente nos sentidos construídos pelos conceitos de escrevivência e marronagem, já que neles se instala a demanda pela legitimação do direito à fala e à escuta.” (FONSECA, 2020, p. 70)

Referências:

Duarte, C. L. Nunes, I. R. Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Cap. 4. 1 ed, Rio de Janeiro: Mina comunicação e arte, 2020.

*Camilla Costa Gonçalves: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.

**Danielle Teixeira Tavares Monteiro: Assistente Social, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pela Universidade de Coimbra – Portugal, psicanalista e escritora.

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