A censura ao direito de sonhar em quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus

A censura ao direito de sonhar em quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus

Por Sabrina Marques Rezende* e Rafael Nascimento de Castro**

Resumo: O trabalho parte da consideração da literatura como direito fundamental do homem, passando a analisar a dimensão literária e o imaginário feminino presentes em Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, a fim de evidenciar a habilidade da autora na criação de representações muito ricas do seu cotidiano miserável, e com isso contestar a consideração usual do texto como sendo um mero documentário sobre a fome no Brasil dos anos 50. Procurando evidenciar a existência de uma censura implícita por parte dos mediadores culturais, encarregada de impedir que uma mulher subalterna possa ser considerada escritora, e relegando-a ao âmbito do mero protesto, conclui-se que a palavra de Carolina, eco de muitas vozes autorizadas, enriquece a cena literária brasileira contemporânea, dando-lhe maior representatividade.

Palavras-chave: direitos humanos, acesso à literatura, escrita subalterna, cidadania autoral.

O presente texto constitui uma resenha do artigo intitulado “A censura ao direito de sonhas em quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus” escrito por Luciana Paiva Coronel, Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP/2004), Pós-doutora junto à Università degli Studi di Genova (Itália- 2014/15).

Inicialmente, Coronel (2014) alude o artigo intitulado “O direito à literatura” de Antônio Cândido, para referenciar a importância da literatura na formação do sujeito: “as palavras organizadas que, sugerindo ao leitor um modelo de ordenamento do mundo, lhe orientam no sentido da compreensão de si e do seu entorno.” (CORONEL, 2014, p. 271)

Análogo ao defendido por Antônio Cândido, é o livro de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada desponta para além da “mulher pobre, preta, mãe solteira por três vezes, favelada e semianalfabeta” (CORONEL, 2014, p. 271) mas, à construção de um diário que traduz sua dor em meio a um ambiente repleto de privações alimentares, financeiras e sociais na favela do Canindé em São Paulo/SP “representando, por exemplo, a fome como uma vertigem amarela. “Quarto de despejo”, título do livro, é igualmente uma imagem-síntese capaz de traduzir a sensação de viver em um local onde as pessoas e o lixo se confundem.” (CORONEL, 2014, p. 272).

Segundo Coronel (2014), a escrita de Carolina de Jesus reflete fidedignamente suas experiências e impressões, nas quais destacam-se a vida na favela, a pobreza, o olhar sensível a beleza da natureza e o encantamento pelos momentos em família. Seu trabalho proporcionou visibilidade ao invisível/indiferente. A escrita e a leitura ofereceram liberdade em seu íntimo, já que no ambiente externo, preto está diretamente relacionado à miséria e ao não acesso à cultura.

O livro de Carolina Maria de Jesus, lançado na década de 60, foi enquadrado como denúncia social, principalmente por conta da crescente politização na época.

“o editor Paulo Dantas assim apresentou-o: “Literatura da favela escrita pelo próprio favelado, eis o sentido sincero do livro escrito pela trapeira mineira, radicada em São Paulo”. Chamou a atenção o editor na obra o “particular sopro lírico, com invulgares clarões de beleza. Isto é que vence as formas estropiadas de sua ortografia e de sua sintaxe primária, no livro, conservadas pelo seu sabor e singeleza” (JESUS, 1960 APUD CORONEL, 2014, p. 275)

Lado outro, Luciana Paiva Coronel ressalta e enfatiza em seu artigo, que a crítica literária não enxergou Carolina de Jesus como escritora, corroborando com o discurso de quem de fato tem legitimidade social para tal, haja vista que a cultura brasileira não poderia vir da favela e se a autora oriunda deste território, melhor que se limite a ele, “passaram a negar à autora simultaneamente a individualidade da voz e a inventividade da escrita”. (CORONEL, 2014, p. 275)

Diante de todo o exposto, é incontroverso que a autora demonstra que por trás de toda esta marginalização ao trabalho da escritora, há beleza e tristeza na voz autoral de Carolina. Sendo porta-voz de si mesma, a escritora externou inclusive o seu isolamento da vida social na favela e a animosidade com seus vizinhos.

Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro e vocês com essas cenas desagradáveis me fornece os argumentos. […] A Silvia pediu-me para retirar o seu nome do meu livro (JESUS, 2007 APUD CORONEL, 2014, p. 280).

De acordo com Coronel (2014), após o auge da publicação do livro e o imenso lucro arrecadado pelas editoras, era esperado pela vontade alheia que como um sucesso relâmpago, a escritora se tornasse anônima e reconhecesse que tampouco fora uma literária.

A censura ao direito de sonhar nos escritos de Carolina, e a decorrente restrição à sua plena cidadania autoral possivelmente se devem às diferentes instâncias de mediação pelas quais o texto dos diários passou até chegar ao público. O jornalista Audálio Dantas, responsável pela apresentação e edição dos dois diários ressalta ter sido pequena sua participação na organização dos volumes: “Conservei a linguagem e a ortografia da autora, sem alterar nada. No trabalho de compilação, houve cortes de grandes trechos, todos sem maior significação. Ficou o essencial, o importante […]” (DANTAS, 1961 APUD CORONEL, 2014, p. 282).

Audálio conserva a linguagem e a ortografia originais, mas sabe que poderia alterá-las, caso o quisesse, pois tem autoridade para fazê-lo. (CORONEL, 2014, p. 282)

Neste diapasão, é possível reconhecer o trabalho de Carolina de Jesus passou por um filtro editorial, a autora frisou quanto ao livro se tratar de uma versão do diário, coberto de véus.

A própria escritora protesta acerca do engessamento identitário a que é submetida pelos especialistas: “Alguns críticos dizem que sou pernóstica quando escrevo – „os filhos abluíram-se. ‟Será que preconceito existe até na literatura? O negro não tem direito a pronunciar o clássico?” (Jesus, 1961, p. 63-64). Atribuindo ao traço étnico a censura recebida pelo uso “do clássico” em sua linguagem, Carolina demonstra aflição diante do perfil caricato de “autora favelada” que lhe é imposto, cerceando seu direito de usar o vocabulário pouco usual que de fato conhece, impedindo-a de ser ela mesma: “Dá a impressão que sou uma folha ao sabor das ondas” (JESUS, 1961 APUD CORONEL, 2014, p. 283)

Ato contínuo, de acordo com Coronel, apesar de Carolina ser autêntica e legítima em sua escrita, a crítica literária criou a distopia de que a escritora “carece ser iluminada por uma série de vozes mais autorizadas do que a dela a falar.” (CORONEL, 2014, p. 285) Deste modo, é possível afirmar a importância da obra de Carolina Maria de Jesus para o mundo. Seus livros instigaram e provocaram uma análise profunda sobre território, interseccionalidade e desigualdade social.

Referências:

CORONEL, Luciana Paiva (2014). A Censura ao direito de sonhar em quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 44, p. 271-288. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2316-40184412. Acesso em: 06 dez. 2021

*Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Advogada, Pós graduanda em Direito do Trabalho pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS), Pós graduanda em Direito Previdenciário pelo Instituto de Estudos Previdenciários (IEPREV) e aluna de Iniciação científica do Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais (PSITRAPP).

**Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Psicologia, Especialista em de Pessoas, Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e membro do Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais (PSITRAPP).

 

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