Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder

Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder

Por Otávio Augusto de Oliveira Lara* e Ricardo Vinicius Cornélio dos Santos e Carvalho**

Síntese: “Uma possibilidade infinita de conexão e informação nos torna sujeitos verdadeiramente livres? Partindo dessa questão, Han delineia a nova sociedade do controle psicopolítico, que não se impõe com proibições e não nos obriga ao silêncio: convida-nos incessantemente a nos comunicar, a compartilhar, a expressar opiniões e desejos, a contar nossa vida. Ela nos seduz com um rosto amigável, mapeia nossa psique e a quantifica através dos big data, nos estimula a usar dispositivos de automonitoramento. No pan-óptico digital do novo milênio – com a internet e os smartphones – não se é mais torturado, mas tuitado ou postado: o sujeito e sua psique se tornam produtores de massas de dados pessoais que são constantemente monetizados e comercializados. Neste ensaio, Han se concentra na mudança de paradigma que estamos vivendo, mostrando como a liberdade hoje caminha para uma dialética fatal transformando-a em constrição: para redefini-la, é necessário tornar-se herege, voltar-se para a livre escolha, para a não conformidade.”

Palavras chave: Psicopolítica; Neoliberalismo; Poder; Liberdade; Big-data;

O presente texto constitui uma resenha do livro intitulado “Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han da Universidade das Artes em Berlim, Alemanha.

O livro de Han tem como principal problema, em um diálogo amplo com um grande número de autores, as novas e sutis formas de exploração instauradas pelo neoliberalismo contemporâneo. Mostra a mutação paradigmática das técnicas de poder da sociedade disciplinar de Foucault, baseada no poder biopolítico, do panóptico benthaminiano, da política e ortopedia dos corpos e seus comportamentos, das regras e coerções externas ao sujeito, para a sociedade do desempenho, onde dados os anseios de dominação totalizante do neoliberalismo sobre o indivíduo, o foco do poder se descoloca da mera dimensão do corpo e se adequa à dimensão psíquica, fundando assim uma técnica de poder de caráter psicopolítico. As técnicas de poder psicopolítico seriam uma forma, segundo Han, de poder altamente inteligente, pois é um poder que atua silenciosa e amigavelmente, que “se plasma à psique, em vez de discipliná-la e submetê-la a coações e proibições” (HAN, 2018, p. 27). Assim, talvez a principal característica dentre as várias apontadas por Han seja a de que a psicopolítica confere ao indivíduo uma noção de liberdade onde “o eu […] submete-se agora a coações internas, na forma de obrigações de desempenho e otimização” (HAN, 2018, p. 9). O sujeito se percebe como um “projeto livre”, um empreendedor de si mesmo, não mais delimitado pelas coerções do dever, mas ensandecido nas ilimitações do poder. Segundo Han, no entanto,

“liberdade individual é uma servidão na medida em que é tomada pelo capital para sua própria multiplicação. Assim, o capital explora a liberdade do indivíduo para se reproduzir: ‘Na livre concorrência, não são os indivíduos que são libertados, mas o capital’” (MARX apud HAN, 2018, p.13).

Os indivíduos da sociedade do desempenho, portanto, têm a liberdade explorada, ou melhor, auto-explorada, contribuindo para as incessantes necessidades de reprodução do capital, sem que ninguém exatamente obrigue esses indivíduos a produzir, e produzir com base em seu poder ilimitado até o esgotamento completo: burnout. O ímpeto produtivo auto-exploratório se apodera do sujeito em uma dimensão quase totalizante de seu ser, uma vez que o indivíduo como “projeto mais eficiente de subjetivação e sujeição” (HAN, 2018, p. 9) é constantemente convidado a comunicar, compartilhar, curtir, produzir e consumir, ser cada vez mais transparentes em seus meios digitais – novamente, sem qualquer coação externa para tal.

A discussão presente no livro do âmbito da transparência e hipercomunicação relaciona-se com o que o autor denomina como “capitalismo das emoções”, onde mostra o papel das emoções enquanto recursos impulsionadores da produtividade e desempenho. A emoção, para Han (2018, p. 65) é “celebrada como expressão da subjetividade livre. A técnica de poder neoliberal explora essa subjetividade livre”. Dirá que emoções e afetos representam expressões subjetivas (ao contrário do sentimento, que é objetivo). As emoções e seu caráter dinâmico e performativo são provenientes de instâncias neuropsíquicas pré-reflexivas, por isso facilmente exploradas em um meio em que se encontram com os afetos que, por sua vez, são facilmente descarregados através da comunicação. O incessante e amigável convite das redes sociais seria um espaço onde as emoções são facilmente performadas, os afetos descarregados, e toda a informação voluntariamente entregue é registrada nos big data. De forma bastante interessante, Han equipara o ato do like, do curtir, ao “Amém!”, como uma espécie de declaração de submissão ao panóptico digital – diferentemente daquele benthaminiano onde os internos se sentem observados por um agente externo, mas agora, todos se observam a si e aos outros (voluntariamente).

Não somente no âmbito da produtividade altamente incentivada para as redes sociais, mas o capitalismo da emoção é também lógica produtiva do indivíduo enquanto empreendedor de si mesmo. Tal fenômeno é perfeitamente exemplificado com a presença dos treinadores motivacionais, coachings, cujas técnicas buscam uma maior efetividade do uso da emoção enquanto recurso. A emoção, novamente, tem caráter performativo, portanto, “como tendência¸ representam a base energética ou mesmo sensível à ação” (HAN, 2018. p. 68, grifo do autor). Não somente a jornada de trabalho passa a ser explorada, e sim o indivíduo por completo, até mesmo sua saúde e bem-estar:

“O imperativo neoliberal de otimização pessoal serve apenas a um funcionamento perfeito do sistema. Bloqueios, debilidades e erros devem ser removidos terapeuticamente para melhorar a eficiência e o desempenho. Assim, tudo é comparável, mensurável e está sujeito à lógica do mercado. Nenhuma preocupação com a boa vida impulsiona a otimização pessoal. Sua necessidade resulta apenas de coerções sistêmicas a partir da lógica do sucesso mercantil quantificável” (HAN, 2018, p. 45).

É genial como o leitor é convidado a perceber a sutil presença das técnicas de poder e exploração do neoliberalismo e toda sua positividade em inúmeras instâncias da vida na contemporaneidade, desde os ambientes de trabalho com o fenômeno da gamificação (que também explora a emoção), nas academias norteadas pelos “princípios” da produção do fitness (“no pain, no gain”) e do sexy, até nas redes sociais como panóptico digital da auto-exposição voluntária e da vigilância generalizada. É instigante perceber como o aparente exercício da liberdade dos “projetos livres” encontra-se uma sutil violência e uma intensa exploração muito maior do que aquela da sociedade disciplinar.

Byung-Chul Han dirá que o panóptico digital da sociedade do desempenho e seu poder psicopolítico é incrivelmente mais eficiente do que aquele panóptico analógico da sociedade disciplinar e o poder biopolítico. A biopolítica é demográfica, a psicopolítica é, além disso, psicológica – capaz de um registro e previsão de comportamentos que nenhuma demografia biopolítica fora capaz. As técnicas de poder psicopolíticas são “aperspectivistas”, logram quantificar a própria psique, e todo clique, voto, like, tweet, compartilhamento, se converte em dados que formam um altamente preciso inconsciente digital: “A microfísica dos big data tornariam visíveis actomes, isto é, microações que escapariam à consciência. Os big data também poderiam promover padrões coletivos de comportamento dos quais não seríamos conscientes enquanto indivíduos” (HAN, 2018, p. 89, grifo do autor). Uma imensa quantidade de dados é cuidadosa, instantânea e permanentemente registrada, monetizada e comercializada, tal como ocorre na empresa Acxiom, comercializadora de pacotes de dados (voluntariamente cedidos) de cerca de 300 milhões de perfis de cidadão estadunidenses, tal como é citado pelo autor.

A obra de Byung-Chul Han mostra uma enorme sensibilidade do autor com a realidade contemporânea, e pode ser algo chocante, pois o cotidiano de muitos dos leitores é marcado por muitas das ideias descritas pelo autor, tais como as redes sociais e seu intenso convite à comunicação, à polêmica, à voluntária entrega de preferências (dados), ou mesmo as situações abusivas de trabalho em que do trabalhador é esperada uma motivação heróica para enfrentar suas péssimas condições de trabalho. O livro permite uma melhor compreensão de fenômenos contemporâneos emergentes como a alta versatilidade do coaching e dos treinadores motivacionais. Permite-nos mergulhar em discussões acerca da saúde mental no trabalho e em demais âmbitos da saúde mental que ganham alguma visibilidade na contemporaneidade através de celebridades, por exemplo, que recorrentemente relatam danos à saúde em decorrência das exigências da manutenção de sua fama, e as adversidades da recepção pública desses relatos. É possível pensar que o mais elementar é a reflexão mencionada no início deste texto – a do paradigma dos indivíduos que se inserem  na sociedade como projetos livres e não como sujeitos submissos. Trata-se, na verdade, de uma nova forma de subjetivação fanatizante e uma forma intensa e totalizante de submissão ao capital, uma intensa autoexploração pelas técnicas de poder do neoliberalismo, que, muito pelo contrário, não são evidentes e materializados como os muros das prisões, escolas e manicômios da sociedade disciplinar. É cada vez mais fácil atribuir o “fracasso”, ou o adoecimento mental de um indivíduo à sua “fraca força de vontade”. É muito mais fácil para que trabalhos incrivelmente monótonos utilizem de estratégias gamificadoras para explorar a motivação dos trabalhadores buscarem atingir suas metas destrutivas. Trata-se, sobretudo, de uma intensa violência, onde “o regime neoliberal de dominação se apropria completamente das tecnologias do eu” (HAN, 2018, p. 43), fazendo com que ao indivíduo, como projeto livre, seja posta toda uma responsabilidade sobre o muito provável fracasso em uma sociedade altamente desigual e injusta em diversos sentidos.

Há também muitas lacunas possíveis de serem refletidas para um leitor em um país como o Brasil, a serem preenchidas com a reflexão, tais como: até que ponto o terceiro mundo está inserido nessa lógica psicopolítica de dominação? Desde 2018, no Brasil, o discurso militarista, “imunológico” para com favelados, imigrantes do terceiro mundo, homossexuais, “esquerdistas”, etc, retornou ao debate político e trouxe à tona discussões anacrônicas como a militarização das escolas. Esta emergência não é de forma alguma compatível com a sociedade do desempenho, a princípio, e sim, altamente disciplinar. Em que medida as características das “duas sociedades” se mesclam no segundo e terceiro mundo? É inegável, no entanto, a presença da mudança de paradigma para a sociedade do desempenho e as técnicas de poder e exploração do neoliberalismo e seu selvagem ímpeto de fragilização das relações de trabalho, tais como no fenômeno nocivo da uberização dos serviços e todo o discurso motivacional e romantizador de certas práticas deste campo. Dificilmente faltarão reflexões a serem extraídas dessa obra, cujo autor vem ganhando cada vez mais importância e notoriedade, já sendo considerado inclusive como um dos grandes pensadores deste século.

Referências:

Han, B-C. (2018). Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: ÂYINÉ.

*Otávio Augusto de Oliveira Lara, graduando do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus Praça da Liberdade, bolsista de iniciação científica do Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais.

**Ricardo Vinicius Cornélio dos Santos e Carvalho, Economista e Administrador. Especialista em Gestão Pública pela Fundação João Pinheiro. Mestre e Doutorando em Administração pelo Cepead/UFMG.

Deixe uma resposta