Gêneros e estilos em análise do trabalho: conceitos e métodos

Gêneros e estilos em análise do trabalho: conceitos e métodos

Por Milena Evellyn Pereira Drummond* e Bruno Márcio de Castro Reis**

Resumo: Neste artigo, a partir de uma discussão sobre a distinção entre o prescrito e o real, é proposta uma conceituação do trabalho de organização assumido pelos coletivos: o gênero do métier. Com relação a este último, o estilo da ação singular libera o sujeito não pela negação do gênero, mas por meio de seu desenvolvimento. Os autores propõem, com a autoconfrontação cruzada, um método clínico que põe à prova esses conceitos.

Palavras-chave: Gênero. Estilo. Análise do trabalho.

O presente texto constitui uma resenha do artigo intitulado “Gêneros e estilos em análise do trabalho: conceitos e métodos” com autoria de Yves Clot, cátedra de Psicologia do Trabalho, professor de Psicologia no Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM/Paris) e Daniel Faïta, professor emérito, membro do laboratório de Aprendizagem, Didática, Avaliação, Treinamento (ADEF) da Aix-Marseille Université. Clot, filósofo e psicólogo, é criador da Clínica da Atividade, uma das perspectivas críticas da Psicologia do Trabalho. Suas reflexões são influenciadas por Ivar Oddone, Lev Vygotsky, Alexei Leontiev, Alexander Luria, Mikhail Bakhtin e Georges Canguilhem. Faïta, linguista e professor universitário, com uma trajetória que vai desde a linguística para as ciências educacionais, incluindo a ergonomia e a clínica da atividade, interessou-se particularmente pela atividade linguística dos trabalhadores (Sperandio, 2018).

O artigo aqui resenhado foi publicado em 2016 na revista “Trabalho e Educação”, um periódico científico, de edição quadrimestral, publicado pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais por meio do Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação (NETE). Este periódico reúne estudos que versam, entre outros assuntos, as seguintes temáticas: Ergologia, Ergonomia, Análise da Atividade do Trabalho; Educação e Trabalho; Linguagem e Trabalho; e Condições de Trabalho e Saúde do Trabalhador.

Neste texto resenhado os autores propõem renovar a tradição francófona de análise da atividade rompendo com o distanciamento entre prescrito e real. Buscam definir os conceitos chaves para responder à pergunta “em que condições e com quais instrumentos práticos e teóricos se pode alimentar ou restabelecer o poder de agir de um coletivo profissional em seu meio de trabalho e de vida?” (p.34). Assim, recomendam que seja feito um esforço coletivo nas metodologias, apresentando, portanto, a autoconfrontação cruzada.

Fundamentados pela clínica da atividade, Clot e Faïta (2016) empregam como seu objetivo central a transformação das situações de trabalho. Propõem que essas transformações, para que sejam duradouras, sejam protagonizadas pelos próprios coletivos de trabalho que formularam a demanda. Assim, o interventor deverá buscar ampliar o poder de agir desses coletivos em seus meios. Para que isso se torne possível, colocam em perspectiva as noções de gênero, estilo e desenvolvimento.

O gênero é a ponte entre o que está prescrito e as maneiras de agir e pensar – e falar – em um determinado meio. O gênero de discurso e o gênero de técnicas estabelecem uma “gama de atividades impostas, possíveis ou proibidas” (p.37), e juntos formam o que os autores denominaram de gêneros de atividades. Por meio destes, os sujeitos suportam o “inesperado do real”, constituindo-se, assim, como uma “pré-atividade”. São, ao mesmo tempo, imposição e recurso, obrigações partilhadas pelo coletivo de trabalho que propiciam a “economia da ação”, sem que precisem ser enunciadas. A impossibilidade de entendimentos comuns, de acordos entre o coletivo de trabalho, têm consequências deletérias, uma vez que, de acordo com os pesquisadores, o gênero regula as relações interprofissionais exercendo uma função psicológica insubstituível.

Os gêneros são mantidos vivos por meio da ação estilística dos sujeitos que o ajustam ao real no momento de agir. Essa ação não trata-se de um atributo psicológico do sujeito, como salientam os autores, é antes participante do gênero que fornece sua ação. Mas o estilo possui uma “dupla vida”, que Clot e Faïta (2016) observam, a partir de uma perspectiva vygotskiana. Além da vida fornecida pelo gênero, que os autores nomeiam como uma “política externa”, há, também, uma “política interna” do estilo, que se constitui como um “estoque de prontos-para-agir” formulado a partir de sua própria história. Assim, o estilo – uma emancipação do gênero – colabora para o desenvolvimento deste enriquecendo-o através do contato do sujeito consigo e com o coletivo que se relaciona.

Diante disso, os pesquisadores assinalam que o impedimento do poder de agir está no cerne das situações patogênicas do trabalho, uma vez que impede o próprio desenvolvimento dos sujeitos. Assim, indicam que a análise do trabalho recoloque os gêneros em marcha a partir da análise dos estilos por meio de métodos que alimentem os diálogos do coletivo de trabalho.

Os diálogos profissionais são então admitidos como métodos de pesquisa, e, por essa razão, os autores discorrem sobre os estudos linguísticos referenciando-se em Bakhtin. Eles sinalizam que a troca verbal é um lugar e um espaço do desenvolvimento que confere as potencialidades subjetivas, sendo o diálogo a própria ação, e não algo prévio a esta. No diálogo há um reencontro do sujeito com ele mesmo e o outro, havendo nele além do sujeito que fala e o outro em diálogo, também um outro que ressoa no sujeito. Nesse sentido, os autores vão dizer ainda de uma motricidade própria ao diálogo, um movimento dialógico criativo.

Diante do descrito, Clot e Faïta (2016) propõem a utilização do método de autoconfrontação, por meio do qual o pesquisador assume “o papel daquele a quem o trabalho do outro deve ser ensinado” (p.46). Este método concerne em um espaço-tempo intencionalmente criado que possibilita o movimento dialógico ao confrontar a situação de trabalho com uma “situação de reconcepção”. Nele o sujeito narra seu próprio trabalho ao telespectador, entretanto, como apontam os autores, haverá partes de sua atividade que o sujeito não conseguirá exprimir, e, no esforço para tal, ele distancia-se de sua própria ação, e assim embarca em um processo de descoberta de si. Este processo é nomeado como “construção do ‘eu’”, pois há um rompimento do “a gente” pelo sujeito, apresentando-se um “eu” que realiza a tarefa de modo singular, único. Por este modo opor-se ao genérico, os pesquisadores salientam que diante das lacunas da verbalização, o trabalhador pode escolher utilizar os recursos oferecidos pelos gêneros ou libertar-se destes. Neste processo se manifesta o desenvolvimento, uma vez que “o eu do discurso abre o caminho para o eu da ação e por contraste aos outros atores possíveis, para as outras maneiras de fazer, para aquilo que se poderia ter feito” (p.50).

Se as vantagens da autoconfrontação, posteriormente nomeada pelos autores como autoconfrontação simples, se expressam pela conquista do eu, os limites residem na possibilidade de o sujeito se opor ao desenvolvimento, elaborando justificativas para continuar a agir do modo que se vê fazendo. Para a superação destes limites, os pesquisadores apresentam a autoconfrontação cruzada como uma renovação metodológica por romper com a dicotomia “eu” e “os outros”. Nesta, dois profissionais são confrontados sobre uma mesma situação, previamente escolhida em uma primeira fase, e cuja narração foi filmada, permitindo assim, o movimento dialógico em direção à criatividade. Há ainda uma terceira fase da análise da atividade, que consiste em um trabalho de análise e coanálise.

Por meio destas verbalizações, que são, para Clot e Faïta (2016), antes de tudo, uma atividade em si, é possível realizar atualizações das realidades do trabalho. Por essa razão, para a análise do trabalho, a verbalização é um instrumento de ação interpsicológico e social que permite ao sujeito ver sua própria atividade pela ótica de uma outra atividade, uma vez que sua fala é dirigida ao outro, sendo metamorfoseada pela atividade deste outro, e, portanto, “a mudança de destinatário da análise modifica a análise” (p. 52).

Nessa perspectiva, os autores alegam que somente é possível compreender a experiência profissional se esta for transformada, uma vez que “compreender é pensar em um novo contexto” (p.54). Assim, a consciência é apresentada como a reelaboração do passado para dele fazer uso no presente, e não apenas o seu reencontro de maneira intacta pelo pensamento. Deste modo, é possível uma nova conceituação de atividade, reconhecida não unicamente pelo que se faz, pelo possível, mas também pelo impossível.

Por fim, diante do salientado, os pesquisadores declaram, através da autoconfrontação cruzada, uma ruptura à cultura dicotômica, propondo uma visão relacional e dialógica dos fenômenos estudados. É possível observar tal ruptura em diversos momentos do texto, em especial quando os autores alegam haver uma função psicológica dos gêneros sociais e uma função social dos estilos individuais. Clot e Faïta (2016) também evidenciam que a metodologia da autoconfrontação permite, num primeiro momento, que o sujeito possa conhecer sua própria prática ao pôr-se à distância dos gêneros para atender às condições reais de suas práticas, mas, ainda, permite igualmente que o sujeito, na fase da autoconfrontação cruzada, possa interrogar-se sobre os sentidos de suas próprias escolhas através da reinterrogação pelo par que “reanima ou revela as ressonâncias, correlações e contradições de que o diálogo é portador” (p.56).

As ideias expressadas no texto mostram-se extremamente valiosas para o campo da psicologia do trabalho ao considerarmos o paradigma emergente da ciência pós-moderna, que opera pelos pressupostos de complexidade, instabilidade e intersubjetividade. Os autores apresentam um posicionamento crítico à tendência individualizante da psicologia tradicional, não por isso rendem-se a um sociologismo dos fenômenos, mas operam na ruptura de tal dicotomia. Além disso, assumem um compromisso com a transformação das condições patogênicas de trabalho, em que o pesquisador-interventor assume não o lugar de expert, mas de facilitador de um espaço-tempo que possibilita que tais transformações sejam feitas pelo próprio coletivo de trabalho, adicionando, assim, uma característica emancipatória à prática descrita.

Referências:

Clot, Y., Faïta, D. (2016). Gêneros e estilos em análise do trabalho: conceitos e métodos. Belo Horizonte: Trabalho & Educação, 25(2), p. 33-60.

Sperandio, Jean-Claude (2018). Daniel Faïta: L’ergonomie comme “force de rappel”. Entretien.

*Milena Evellyn Pereira Drummond, estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, ex-integrante do Grupo de Pesquisa: Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – PsiTraPP / PUC Minas.

**Bruno Márcio de Castro Reis – Psicólogo, mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisador no PsiTraPP – PUC Minas.

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