O novo espírito da depressão: imperativos de autorrealização e seus colapsos na modernidade tardia

O novo espírito da depressão: imperativos de autorrealização e seus colapsos na modernidade tardia

Por Sabrina Marques Rezende* e Daniela Piroli Cabral** 

Resumo

O artigo arrisca uma interpretação sociológica da suposta “pandemia de depressão” que assola a contemporaneidade. Os mal-estares psíquicos comumente descritos como experiências depressivas são compreendidos à luz das formas de subjetividade produzidas ou, pelo menos, encorajadas pela modernidade tardia. Com base no retrato sócio-histórico do “novo espírito do capitalismo” formulado por Boltanski e Chiapello, o texto defende que os atributos de iniciativa, empreendedorismo e adaptabilidade tornaram-se imperativos da individualidade contemporânea não somente no mundo do trabalho, mas também em diversos outros domínios existenciais, tais como o cuidado com o corpo e as relações erótico-afetivas. Sem desconsiderar a inflação de diagnósticos psiquiátricos como parte das causas por trás da alegada pandemia de depressão na atualidade, o trabalho sustenta que as formas muito reais de sofrimento psíquico classificadas nesses termos são a moeda reversa, por assim dizer, de demandas sistêmicas pela autorrealização individual: o colapso depressivo da iniciativa e a ausência de “projetos” substituem o “empreendedorismo de si”; a interrupção do movimento sobrepuja a adaptabilidade flexível do self a uma sociedade de mudanças aceleradas; e a experiência do isolamento existencial substitui a esperada comunicabilidade do sujeito-trabalhador contemporâneo como infatigável networker. O trabalho conclui com uma reflexão sobre os limites que a civilização contemporânea coloca à “ecologia psíquica” e à “economia energética” dos indivíduos nela imersos.

Palavras-chave: Depressão, Modernidade tardia, Capitalismo, Individualização, Aceleração

 

O artigo escrito por Gabriel Peters, “O novo espírito da depressão: imperativos de autorrealização e seus colapsos na modernidade tardia”, foi publicado em 2021 pela Revista de Ciências Sociais Civitas, vol. 21 (1), com o objetivo de interpretar a suposta “pandemia de depressão” presente na contemporaneidade baseado “no retrato sócio histórico do “novo espírito do capitalismo” formulado por Boltanski e Chiapello” (PETERS, 2021, p. 71).  

A pesquisa evidencia como a dinâmica das “gramáticas normativas” e as “ordens de justificação” do novo capitalismo quais sejam: a iniciativa, o empreendedorismo, a adaptabilidade, as relações erótico-afetivas e os diagnósticos psiquiátricos massivos, influenciam a composição do sujeito contemporâneo. 

Peters (2021) enfatiza as críticas históricas feitas ao capitalismo. Nos anos 30, por influência da “crítica social” na tentativa de diminuir a desigualdade e, nos anos 70, a “crítica artística” elaborada por Boltanski e Chiapello cujo objetivo era demonstrar como os aparatos de conformidade da economia industrial e da burocracia estatal sufocavam a criatividade e a autonomia dos indivíduos. Segundo o autor: 

(…) em prol de autonomia, flexibilidade, espontaneidade e criatividade nos âmbitos da economia e do trabalho. Tais atributos passaram a ser exigidos não somente das organizações, mas também dos participantes individuais do mundo do trabalho que desejassem permanecer valiosos no novo capitalismo. (PETERS, 2021, p. 72)

Neste sentido, este novo capitalismo citado por Peters (2021) exige que o indivíduo tenha recursos que o auxiliem a ser ativo para além da atividade laboral em si, tais como: adaptabilidade, flexibilidade, autonomia, disposição para assumir riscos, sociabilidade e por fim, possuir competências diferenciadas.

Ato contínuo, Peters (2021) faz uma ponte deste último quesito que exige competências diferenciadas e raras com a “cultura da autenticidade” em que o sujeito “deve realizar-se segundo uma concepção própria de boa vida.” (PETERS, 2021, p. 73). Este direito a autorrealização autêntica é criticado pelo autor pois, o que era uma oportunidade se tornou uma demanda. Ainda nesta linha, Peters (2021) sintetiza que:

a transição de um regime fordista de produção para um capitalismo de acumulação flexível significou também uma passagem da produção em massa de mercadorias homogêneas para uma exploração mercadológica de consumos, gostos e estilos de vida diferenciados. (PETERS, 2021, p. 74)

Entrementes, Peters (2021) enfatiza os custos psíquicos deste imperativo sistêmico do novo capitalismo para o sujeito como modalidade individualizante e adoecedora. O sujeito se submete ao critério da atividade para ser dotado de valor, chegando ao extremo de ser classificado com quadro de depressão pela psiquiatria contemporânea. Nesta perspectiva nota-se que o sofrimento psíquico se tornou uma espécie de subproduto coletivo. Peters (2021) ainda critica que a suposta pandemia de depressão é resultado “de uma inflação infundada no número de diagnósticos psiquiátricos” (PETERS, 2021, p. 76), sem deixar de destacar o papel da indústria farmacêutica na sustentação deste processo vulgarização.

Isto posto, Peters (2021) destaca que a subjetividade empreendedora e a subjetividade depressiva andam lado a lado, já que “o indivíduo excitadamente disposto a novas e variadas experiências dá lugar a um sujeito cuja suscetibilidade à experiência de prazeres e alegrias foi corroída” (PETERS, 2021, p. 76), tornando-se um empreendedor colapsado.

Destarte, importa ressaltar a importante função das redes sociais para intensificar o quadro depressivo deste indivíduo desconexo e atrelado “a uma experiência de inferioridade diante da riqueza experiencial da vida de outros.” (PETERS, 2021, p. 80).

Deste modo, esta ordem axiológica do novo capitalismo é o reverso da depressão. Seguindo esta dinâmica, o indivíduo somente é valorizado se o corpo está em movimento, ativo e adaptável, ao passo que, o sujeito em depressão é incorpóreo. Peters (2021) traz à tona esta crueldade do capitalismo neoliberal que trata as pessoas com sofrimento psíquico como um empecilho para o desenvolvimento econômico, como um corpo pesado, esgotado, inativo.

Como o conclusão, o autor enfatiza a “política da depressão” (p.81) na qual define a depressão como meio de protesto ético-político do indivíduo para fazer frente às inúmeras demandas do capitalismo, sendo “um modo de dizer não ao que somos ordenados a ser” (p.81).

Referência:

PETERS, Gabriel. O novo espírito da depressão: Imperativos de autorrealização e seus colapsos na modernidade tardia. Civitas – Revista de Ciências Sociais, 2021, v. 21, n. 1 [Acessado 23 Junho 2022], pp. 71-83. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.1.39150

 

*Sabrina Marques Rezende. Estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, integrante do Grupo de Pesquisa: Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – PsiTraPP / PUC Minas.

**Daniela Piroli Cabral é Terapeuta Ocupacional (UFMG), Psicóloga (PUC Minas) e mestranda em Psicologia pela PUC Minas. Trabalha como Psicóloga na Gerência Ocupacional da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e também em consultório particular. É membro do Grupo de Pesquisa: Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – PsiTraPP / PUC Minas.

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