O trabalho mediado por plataformas digitais e assimetrias nas relações de comunicação

O trabalho mediado por plataformas digitais e assimetrias nas relações de comunicação

 

Por Rafael Martins Moreira de Souza* e Rodrigo Padrini Monteiro**

Resumo 

O objetivo deste artigo é discutir sobre as relações de comunicação constituídas no contexto do trabalho de entrega  (delivery) mediado por plataformas digitais, considerando especificamente o caso da empresa iFood no Brasil. Trata-se de  uma proposta que busca refletir como a referida empresa opta, no projeto e na interface do seu aplicativo, por uma interação  limitada com os trabalhadores que realizam a atividade de entrega. Pode-se dizer que, nesse sentido, existe uma assimetria  de informação nas relações entre a empresa de plataforma digital e os chamados “entregadores”, visto que a empresa possui  o monopólio da informação do processo de trabalho gerenciado e controlado algoritmicamente por ela própria. A discussão  apresentada neste artigo se apoia em resultados de uma pesquisa empírica realizada com trabalhadores que utilizaram o  aplicativo de delivery da empresa iFood na região sul do país, em 2020, no contexto da pandemia de COVID-19. 

Palavras-chave: Trabalho; Comunicação; Plataforma digital; IFood. COVID-19.

O presente texto constitui uma resenha do artigo intitulado “O trabalho mediado por plataformas digitais e assimetrias nas relações de comunicação” com autoria de Camilla Voigt Baptistella e Claudia Nociolini Rebechi da Universidade Tecnológica Federal do Paraná: Curitiba, PR.

Com a pandemia de COVID-19 decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo sofreu alterações em diversos aspectos. O âmbito do trabalho não deixou de ser um dos afetados pelo vírus. As organizações, em escala global, tiveram que se adaptar ao novo contexto e suas exigências, incluindo a necessidade de distanciamento social e a crise econômica. As autoras mencionam que os salários precisaram ser modificados e a jornada de trabalho dos funcionários sofreu alterações. Não obstante, o contexto brasileiro traz suas especificidades. O artigo nos remete assertivamente para a realidade da enorme parcela de trabalhadores atuando na informalidade no país. Esse aspecto soma-se às mudanças emergentes com a pandemia e resulta em uma piora ainda mais expressiva na vida do trabalhador.

O texto nos traz que, por consequência da pandemia e a piora na qualidade de vida decorrente da mesma, aumentaram o número de pessoas em busca de emprego, mesmo que informal. Por conseguinte, houve um aumento do número de trabalhadores cadastrados nas plataformas digitais de aplicativos de entrega. Segundo notícia do portal Terra (2020), o Ifood teve um aumento de 106% no número de interessados em atuar como entregadores no mês de março, em comparação com fevereiro do ano de 2020. O artigo menciona o Uber Eats, Rappi e o iFood como exemplos das plataformas mais conhecidas da modalidade de delivery, geralmente de alimentos, mercado que começou a se popularizar no Brasil em 2014, mas já era uma realidade antes disso na Europa e nos Estados Unidos. 

Um dos principais argumentos das autoras, que será muito bem aprofundado, diz de uma atitude dessa modalidade de organização para com os seus entregadores. Essas organizações, segundo as mesmas, negam sua responsabilidade em fornecer condições de trabalho dignas. Os entregadores realizam paralisações em suas atividades objetivando manifestar seu descontentamento com essas empresas, explicitando outra problemática relevante. Isso seria oriundo da falta de diálogo entre as empresas de plataformas digitais e os trabalhadores. Assim sendo, o artigo em análise decide focar sua discussão nas relações de comunicação entre os entregadores e a empresa de plataforma digital Ifood no Brasil, que atua como aplicativo de delivery.

As autoras utilizaram uma análise de depoimentos de cinco entrevistas feitas com entregadores da plataforma, derivadas do trabalho de Baptistella (2021). Com base nessa análise, o conceito de “assimetria de informação” é utilizado para colaborar com a descrição da comunicação estabelecida entre a plataforma e seus usuários. O conceito é derivado da obra de Rosenblat e Stark (2016), que entendem o conceito como um desequilíbrio na posse de informações sobre o processo de trabalho. Esse desequilíbrio ocorreria, no caso da Ifood e plataformas semelhantes, através do gerenciamento do trabalho e do processamento de dados feitos pelos algoritmos automáticos das plataformas digitais.

Porém, mesmo havendo maior retenção de informação, mediadas por seus algoritmos, as mesmas se recusam a fornecer vínculo empregatício e se responsabilizar por melhores condições de trabalho. No caso da iFood, os entregadores não são sequer nomeados como trabalhadores, mas sim de colaboradores ou outros termos semelhantes. O argumento utilizado, segundo o texto, é o de que a iFood atua apenas como mediadora entre os pedidos e aqueles responsáveis pela entrega, que seriam então trabalhadores autônomos. Porém, o artigo não deixa de chamar atenção para o fato crucial de que o aplicativo do iFood gerencia a atividade dos entregadores e atua nesta ativamente.

A começar pela adesão obrigatória de todos os entregadores aos termos de uso. Em uma modalidade de trabalho virtual como essa, as autoras destacam a dependência dos trabalhadores de uma plataforma. E todos os interessados em realizar entregas pela plataforma do iFood precisam concordar com estes termos antes de iniciar quaisquer atividades. Estando sujeito aos termos durante todo o período em que atuam, podem ser punidos e terem as suas contas suspensas em casos de descumprimento de algum dos termos estabelecidos. Dois problemas derivam dessa situação. Primeiramente, esta adesão compulsória ao termo deixaria, ainda segundo a autora, os entregadores mais suscetíveis aos interesses do iFood. Além disso, os entregadores entrevistados relatam diversas vezes não haver contato efetivo entre eles e a empresa. Logo, muitos relatam serem punidos sem ter o motivo para a punição especificado e sem a possibilidade de recorrer à decisão.

No que diz respeito ao contato entre a empresa e seus “colaboradores”, o texto nos traz o chocante relato de que praticamente não há uma via de contato imediato entre ambos. Os entregadores possuem acesso a uma aba denominada “Chamado”, com a emissão de respostas automáticas, ou o acesso a um chat de conversa por texto. Porém o chat só está disponível quando há uma entrega em aberto, e há relatos de demora nas respostas da iFood. Para além disso, não existiria um local no qual os entregadores podem se dirigir para expor suas demandas, ou um número pelo qual pudessem entrar em contato com um funcionário responsável. A assimetria de informação mais uma vez se demonstra evidente. O iFood pode entrar em contato com seus entregadores a qualquer momento pelo próprio aplicativo, via SMS, whatsapp ou email. Porém o inverso não se aplica, os entregadores não podem entrar em contato com a empresa com a mesma facilidade. A pesquisa em que as entrevistas foram feitas foi realizada em 2021. Vale destacar a necessidade de se manterem atualizadas as pesquisas no que se refere aos mecanismos que a plataforma disponibiliza para o contato entre ela e os entregadores.

É possível perceber que a problemática do texto gira em torno da concentração de informação e gerenciamento do trabalho por empresas que, visando a redução de seus custos operacionais, se abstém de garantir direitos trabalhistas e vínculo empregatício, transferindo os riscos do trabalho para o trabalhador. A plataforma se utiliza, segundo as autoras, de um “exército de trabalhadores disponível para a viabilidade dessa gestão do trabalho que é algorítmica.” (p. 88). Essa abordagem se aproxima do conceito marxista de exército de reserva, que diz respeito à disponibilidade de um amplo contingente da população que vende sua mão de obra, porém sem necessariamente encontrar alguém que esteja disposto a comprá-lo (Ferraz, 2010). O iFood, ao se dispor de uma grande quantidade de pessoas dispostas ao trabalho, poderia então facilmente descartar (suspender permanentemente) aqueles que de alguma forma contrariam seus interesses. Não obstante, uma grande problemática surge quando os motivos das suspensões não são especificados pela organização. O artigo em questão consegue abordar essas questões com relatos de pesquisa de maneira coesa e organizada.

Referências:

Baptistella, C. V. (2021). Pra quem tem fome: vigilância e controle algorítmicos no processo de trabalho de um aplicativo de entrega em Curitiba (Master’s thesis, Universidade Tecnológica Federal do Paraná).

Ferraz, D. L. D. S. (2010). Desemprego, exército de reserva, mercado formal-informal: redescutindo categorias.

Rosenblat, A., & Stark, L. (2016). Algorithmic labor and information asymmetries: A case study of Uber’s drivers. International journal of communication, 10, 27.

Terra Networks Brasil LTDA (2020). Número de entregadores de aplicativo cresce após covid-19. https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/numero-de-entregadores-de-aplicativo-cresce-apos-covid-19,a260720f923439424d686333ed8d32ee9arc7ofd.html

 

*Rafael Martins Moreira de Souza. Estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, integrante do Grupo de Pesquisa: Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – PsiTraPP / PUC Minas.

**Rodrigo Padrini Monteiro é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e integrante do Grupo de Pesquisa: Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – PsiTraPP / PUC Minas.

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