Escrevivência e seus atravessamentos: caminhos possíveis

Escrevivência e seus atravessamentos: caminhos possíveis

Por Danielle Teixeira Tavares Monteiro*

Belo Horizonte, 04 de março de 2022

Querida Conceição,

De mãos dadas, quatro mulheres e dois homens, caminham para realizar um mergulho em sua Escrevivência. Nossa aposta é compreender, elaborar a leitura e aplicá-la, numa tentativa em lhe dar materialidade. Eu acredito que algo concreto pede para ser compreendido em sua Escrevivência, desde este início. Talvez o que eu deseje seja algo parecido com seu “conceito-experiência” (que ainda preciso descobrir).

Falar em concretude, de experiência é estranho, mas eu acredito que a teoria deve atravessar o corpo, e a prática deve ser uma forma de entrelaçamento entre aquele que escuta e aquele que é escutado. Walter Benjamin apresenta a experiência como algo transformador, uma possibilidade para que o sujeito se abra ao novo e saia diferente.

No segundo semestre de 2021, nossa proposta foi mergulhar na história de vida equanto método, na memória que atravessa o tempo e explode, todos os dias, na frente do espelho, para os olhos mais atentos.

Nessa trajetória, precisamos nos desfazer de algumas amarras. A métrica acadêmica, importante e necessária, já não era suficiente e o desejo de apurar a escuta e entender o outro que fala (pelo menos em tentativa disposta) era pungente.

Conhecemos pessoas, lugares, sujamos nossos pés de barro, nadamos em cachoeira e escutamos histórias à beira de um riacho. Nós fomos troca. Construção. Nós fomos encontro. Estivemos com o outro. Recebemos banho cheiroso e a benção era água de alecrim e música. Nós sentimos “o quase gozo da escuta”.

Ao final desse ciclo, penso que saímos diferentes. Eu me deparei com mulheres que conseguiam se olhar no espelho. Espalhar palavras soltas em papéis se tornou viável. Mulheres que se permitiam errar e não ficaram com medo de julgamento. Talvez elas tenham encontrado uma parte nessa trajetória, e o canto apareceu como voz doce, forte, serena. Foi bonito de ver. Corajosa e sensível mulher se colocou em arte.

Percebi que naquele momento não havia mais a separação entre a teoria e a prática. A psicologia estava na pele sensível e nos ouvidos atentos, no olhar que brilhava a cada pergunta sem resposta. E o sorriso era a certeza e a liberdade do não-saber. Está tudo bem. Nós escutamos histórias, tocamos vidas de vidas que afetam vidas. E hoje começamos a nos debruçar em sua Escrevivência. Afinal, que palavra é essa que aglomera duas das palavras mais significativas, pelo menos para mim: escrever e vivência? Escrever a vivência.

No livro que nos propomos a estudar, logo no primeiro texto me deparo com a certeza do não significado da palavra, por si só. A certeza da incerteza aparece enquanto possibilidade de pesquisa, de descoberta, na sutileza em transformar um conceito em um ato político. Um conceito que também não se limita. Algo que extrapola o significado e faz o significante ser a própria escrita, enquanto se escreve.

Talvez seja isso. Penso que a compreensão não passa pela apropriação de sua definição, numa assimilação fria do conceito. Definir também é delimitar. E talvez delimitar um espaço possível para sua Escrevivência seja, hoje, impossível. Não há espaço que abarque sua abrangente. Não há espaço que contenha sujeitos dispostos a resistir. E, especialmente, resistir coletivamente.

Afirmar que todas as histórias são significativas: “a história do outro é significativa na medida em que essa história tem ressonância em mim e entender a ressonância como unidade” muda o patamar da clínica, pois altera, sobremaneira, a pesquisa e a intervenção. Os pedaços da neutralidade científica nas pesquisas sociais e humanas se juntam num mosaico imenso, onde já não se sabe quem é o pesquisador e o pesquisado. Amalgama e caco. Todos sairemos transformados de sua Escrevivência, ainda que saibamos que há um direcionamento necessário, uma denúncia fugaz das invisibilidades, de silenciamento, de mulheres pretas, corpos escravizados, escluídos. A Escrevivência, nesse sentido, é uma apropriação de si, de registro das oralidades possibilitado através da letra, da escrita, apropriado por quem a detém. Sim, a aprendizagem da escrita está na vida, na diferenciação entre dominar mundo e entender a vida. Eu também prefiro buscar entender a vida e me incomodar com o estado das coisas. Dominar nunca me pareceu tão violento e triste, e nunca esteve tão perto.

Em suas palavras:

“O que escrever, como escrever, para que e para quem escrever? Escrevivência, antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera. Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundovida. Um mundo que busco apreender, para que eu possa, nele, me autoinscrever, mas, com a justa compreensão de que a letra não é só minha. Por isso, repito uma pergunta reflexiva, que me impus um dia ao pensar a minha escrevivência e de outras. Indago sobre o ato audacioso de mulheres que rompem domínios impostos, notadamente as mulheres negras, e se enveredam pelo caminho da escrita: “O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e, quando muito, semialfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita”?” (p. 35)

E, você, ainda ressalta: “E por isso é uma escrita que não se esgota em si, mas, aprofunda, amplia, abarca a história de uma coletividade. Não se restringe, pois, a uma escrita de si, a uma pintura de si.” (p. 35).

Eh! Hoje me separei um pouco de Clarice, e também me sinto mais próxima de Gloria Anzaldúa, nas palavras dela:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. […] Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever. “

É com esse desejo que busco caminhar junto, entendendo que a Escrevivência não é um ato individualizado, muito menos narcisista. Escrevivência é ato político, exige posicionamento que extrapola o caráter acadêmico de nossas pesquisas. Tentaremos caminhar e nos comprometer em sairmos transformados, mais atentos a todas as variáveis que atravessam a vida humana, com a humildade em saber que nada por si só explica a complexidade da vida. Nas palavras de Drummond: “Se procurar bem você acaba encontrando. Não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida.”

Um abraço,

Danielle Monteiro.

 

Referências:

Duarte, C. L. Nunes, I. R. Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Cap. 1 e 2. 1 ed, Rio de Janeiro: Mina comunicação e arte, 2020.

*Danielle Teixeira Tavares Monteiro: Assistente Social, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pela Universidade de Coimbra – Portugal, psicanalista e escritora.

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