Por Ana Rita Assis Cardoso de Souza*, Camilla Costa Gonçalves** e Danielle Teixeira Tavares Monteiro***
O presente texto constitui uma resenha dos capítulos 2 e 4 da Parte II do livro intitulado “O tempo vivo da memória” com autoria de Ecléa Bosi, mestre e doutora em Psicologia Social, pesquisadora de Memória e Sociedade e Professora Emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Nesta parte do livro, a autora discorre sobre a complexidade da experiência humana no mundo, tendo em vista que esta é delineada por nossa percepção. A percepção produz limitações de análise tendo em vista seu caráter subjetivo, mas, ao mesmo tempo, pode abrir meios para a inovação à medida em que se constrói um espaço aberto de contrapontos.
A memória, interpretada como a recordação das experiências, também é atravessada e/ou engessada pela percepção. Assim, cada sujeito, ao se orientar por sua própria percepção e visão de mundo, faz uma construção subjetiva de memória.
A autora aponta que uma forma menos trabalhosa de perceber do mundo é quando nos voltamos para os recortes culturais e para as construções dos estereótipos, pois o trabalho de percepção também é mediado por orientações coletivas, o que resulta, inclusive, na aceitação e em poucos conflitos. Ela compara o estreitamento cultural e estereotipado da percepção com a experiência da criança, que depende da consciência e do consentimento do outro. Este movimento seria necessário para o indivíduo na infância, contudo, em outros ciclos de vida esta transferência de consciência pode ser interpretada como autoeliminação. O sujeito deixa de compreender um fenômeno como ele é para engessá-lo em um conceito seguro, carregado de pré-concepções.
E como podemos construir caminhos menos atravessados pela opinião e pelos estereótipos? Bosi afirma que para delinear um caminho diferente, é preciso olhar para o mundo com estranheza, como algo jamais visto, questionando e/ou negando as mediações dadas. Dessa maneira, a percepção: “[…] Pode se formar através de um trabalho sobre o mundo, de uma negação do dado imediato, que recebe recompensa quando já não descrevemos nem classificamos, mas habitamos as coisas do mundo (Bosi, 2013, p. 116).
Bosi, a partir da realidade brasileira, apresenta a disparidade existente entre a cultura popular e a erudita. A segunda, associada às classes dominantes, é uma forma de expressão normatizada e que, muitas vezes, desqualifica a cultura popular. Ou seja, é fornecida uma cultura qualificada como verdadeira e aceita socialmente, que exclui as classes pobres como detentoras de saberes. Sob esta visão, nosso olhar estaria carregado de estereótipos que não permitiriam a compreensão da cultura popular como uma forma de expressão da experiência no mundo, subjetivação, resistência e produtora de liberdade, limitando assim a percepção.
Dessa forma, é preciso voltar-se para o mundo sem a intenção de incorporar somente o que é semelhante à própria opinião. A autora afirma que:
As motivações que estão por trás da opinião (aplauso do grupo, segurança, repouso no estereótipo) são diferentes das que estão por trás da verdade. Não se trata de procurar uma simples congruência interna de fatos. Deve-se confrontar cada asserção com a experiência e voltar para as coisas (p. 123).
Ao abrir espaço para narrativas diversas, compreendemos que o Brasil detém múltiplas realidades e cosmovisões, e ao fazer pesquisa com os métodos narrativos e em especial com a história de vida é possível absorver e ampliar os olhares para a constante crítica e resistência cultural produzida. Assim, percebemos que mesmo quando falamos de cultura, nós estamos falando de diversas culturas, ou seja, múltiplas (e talvez infinitas) formas de leitura da realidade.
O texto nos aponta a necessidade do exercício de escuta e de olhar mais humilde e sensível para o outro e para a realidade que nos cerca, na qual a busca pelo conhecimento passa pela construção do mesmo a partir do olhar daquele que vivencia a experiência. Ele nos aponta a necessidade de questionamento da realidade e o conhecimento construído à priori. Talvez esse seja um caminho possível de resistência da própria forma de fazer pesquisa, uma mudança que diz do olhar do pesquisador e do lugar que este ocupa na construção e apropriação do conhecimento do mundo e do outro.
Referências:
Bosi, E. (2013). O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 113-126. 151-164.
*Ana Rita Assis Cardoso de Souza: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.
**Camilla Costa Gonçalves: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.
***Danielle Teixeira Tavares Monteiro: Assistente Social, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pela Universidade de Coimbra – Portugal, psicanalista e escritora.
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