Saúde do trabalhador e o aprofundamento da Uberização do trabalho em tempos de pandemia

Saúde do trabalhador e o aprofundamento da Uberização do trabalho em tempos de pandemia

Por Andrizia Gomes Pereira e Rafael Nascimento de Castro

O artigo escrito por Flávia Manuella Uchôa-de-Oliveira, “Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia” foi publicado em 2020 pela Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (vol. 45), tendo como objetivo discutir possíveis aprofundamentos da uberização do trabalho, considerando o período pandêmico. Tal movimento, caracterizado pelo termo “uberização”, representaria uma fragmentação expressiva no contexto laboral, além de uma potencialização de formas contratuais atípicas que favorecem a precarização dos direitos trabalhistas. Para elucidar esta questão no contexto brasileiro, Uchôa-de-Oliveira (2020) cita Sato (2017):

O trabalho em nosso país é caracterizado pelo trânsito constante dos trabalhadores entre as áreas centrais e periféricas do trabalho. A polimorfia do trabalho, como pensada por ela, busca trazer complexidade às análises do trabalho, principalmente no contexto brasileiro em que os trabalhadores estão inseridos em várias atividades ao mesmo tempo, transitando entre mercados e criando trabalho. Esta noção torna-se uma ferramenta analítica que considera uma perspectiva dinâmica e histórica do trabalho, levando em conta as transformações que as várias formas de trabalhar sofrem ao longo do tempo (SATO, 2017 apud UCHÔA-DE-OLIVEIRA, 2020).

Viabilizado pelo avanço tecnológico, a autora aponta uma interrelação da uberização entre o novo e o antigo na organização do trabalho, na qual o novo é representado pela evolução tecnológica onde se apresentam as plataformas digitais e o velho simboliza a permanência e continuidade das mesmas formas precárias de inserção do trabalhador. Desta forma, destaca-se que uberização não se estabeleceu de maneira súbita, mas trata-se de um movimento gradual e histórico da conjuntura brasileira, onde já se observava o avanço da fragmentação do trabalho e de novas formas contratuais que expressavam o esvaziamento dos direitos trabalhistas conquistados ao decorrer do tempo. Para esclarecer o que se apresenta como movimento da uberização, afirma Uchôa-de-Oliveira:

“(…)pode ser compreendida como um “resultado” do que se acumulou há ao menos cinco décadas: cadeias de produção fragmentadas com massivos processos de terceirização e de subcontratações, além da progressiva perda de direitos sociais e trabalhistas” (UCHÔA-DE-OLIVEIRA, 2020).  

A uberização ganha força e vai se tornando cada vez mais robusta no mercado de trabalho, por ser considerada uma saída possível frente às altas taxas de desemprego que se potencializam no contexto pandêmico. Uchôa-de-Oliveira (2020) aponta que segundo dados do IBGE, no primeiro trimestre de 2021, já contabilizava 14,8 milhões de pessoas na fila do desemprego, apontando para um crescente exército de reserva, conforme conceituou Marx. Inserido neste drástico contexto, este modelo de trabalho se torna cada vez mais procurado por uma gama de trabalhadores que não conseguem se inserir no mercado formal.

Atrelado a este modelo, a autora discute um tema amplamente divulgado pela lógica neoliberal, que seria o trabalhador empreendedor, segundo esta perspectiva, o empreendedorismo poderia se mostrar como uma saída interessante, na qual o indivíduo teria a possibilidade de gerir seu próprio trabalho, sendo livre para negociar. Ocorre que, em contrapartida, o trabalhador se torna o único responsável pelo sucesso, fracasso e possíveis riscos do trabalho, de forma que, o empregador se exime de quaisquer ônus resultantes da atuação laboral, mas recebe os lucros pelos serviços dos prestadores. Apesar de falacioso, este discurso opera de forma sedutora, em especial considerando os índices de desemprego, logo, observa-se que em prol da empregabilidade, fundamental para sobrevivência, o trabalhador se vê em posição de ter que abrir mão dos direitos e da seguridade(Uchôa-de-Oliveira, 2020).

A autora ainda afirma que, seguindo uma agenda neoliberal que vem agindo para um gradual esvaziamento dos direitos conquistados através do advento da CLT e estabelecidos posteriormente pela Constituição de 1988, seus expoentes e defensores tendem a reiterar que o próprio trabalhador deve ser o gestor de si mesmo no trabalho.

“Para sua inserção, o trabalhador deve aprender a se autogerir, tornar-se empregável, investindo em si mesmo. Deve, especialmente, aprender a ser um empreendedor: um indivíduo em constante formação que toma para si todos os riscos de seu trabalho.” (UCHÔA-DE-OLIVEIRA, 2020).

A validade da uberização e a ausência de vínculos empregatícios vem sendo amplamente discutida, também no âmbito jurídico. O vínculo de emprego entre o motorista e a Uber foi reconhecido em agosto de 2018 pelo Tribunal Reginal do Trabalho da 2ª Região em São Paulo, segundo a afirmação de que não existe algo como a “escolha” do trabalhador em se manter “on-line” ou “off-line” para prestação do serviço (Uchôa-de-Oliveira, 2020). Contudo, em fevereiro de 2020, tal decisão foi derrubada pelo Tribunal Superior do Trabalho, indicando que a Uber é apenas uma mediadora do serviço e que o vínculo empregatício não pode ser reconhecido (Uchôa-de-Oliveira, 2020).

Observa-se que sob a justificativa de serem apenas mediadoras entre os prestadores de serviços e os consumidores, esta modalidade de trabalho permanece se isentando de quaisquer responsabilidades em relação ao trabalhador que é visto como autônomo e livre para permanecer ou não nas plataformas digitais de serviços. Ainda neste sentido, a autora apresenta no ensaio algumas decisões judiciais que ignoram a complexidade dessas novas modalidades de trabalho e acabam colaborando para a precarização dos direitos trabalhistas (Uchôa-de-Oliveira, 2020).

O cenário supracitado contribuiu para o que é chamado pela autora como uma superexploração, que exacerba as vulnerabilidades dos trabalhadores ao passo que desresponsabiliza as contratantes. Os trabalhadores se tornam os únicos responsáveis, também, pela manutenção de suas ferramentas de trabalho (carro, celular, internet, no caso específico dos motoristas de aplicativos). As discussões acerca os riscos laborais também acabam por ser esvaziadas, sobre o que a autora comenta:

“A exposição ao risco no ambiente de trabalho, discussão tão central na saúde do trabalhador, agora não está mais vinculada ao ambiente da empresa, mas ao ambiente e às ferramentas que o trabalhador uberizado possui, adquire ou aluga.” (UCHÔA-DE-OLIVEIRA, 2020).

Atrelado a isso, a autora discute como esta nova forma de organização do trabalho traz impactos sobre a saúde do trabalhador. Além do não reconhecimento do vínculo empregatício, observa-se como as plataformas estabelecem um controle do tempo dos prestadores, remetendo essa “nova” modalidade a uma versão refinada do Taylorismo. Outra questão crucial analisada no ensaio é a demanda exacerbada que se impõe aos trabalhadores, em especial no período pandêmico que favoreceu para o crescimento da uberização, resultando no estabelecimento de metas altas que podem contribuir para o adoecimento do trabalhador (Uchôa-de-Oliveira, 2020).

Levando em consideração os aspectos mencionados neste texto, faz-se nítida a urgente demanda por uma atenção mais cuidadosa acerca da uberização, bem como produção de pesquisas que tenham um olhar mais sensível a como essas formas de trabalho estão impactando a saúde e bem estar dos trabalhadores que estão sendo afetados diretamente por tais mudanças (Uchôa-de-Oliveira, 2020). Por muitas vezes, esses trabalhadores não veem outra alternativa a não ser o ingresso nessas plataformas que promovem a precarização, expondo-se a situações problemáticas e sem a menor garantia de amparo.

É necessário discutir se é essa liberdade pode ser considerada como algo feito em plena consciência e com irrestrito poder de escolha, ou se essas pessoas se veem obrigadas a se submeter a esse tipo de exposição devido às contingências sociais, como o aprofundamento da relativização das normas trabalhistas, a imensa taxa de desemprego, e o momento de crise sanitária que enfrentamos. Nesse sentido, destaca-se a importância de discussões que se atentem à realidade histórica e social brasileira, além disso, observa-se a necessidade de se refletir sobre como o direito do trabalho se apresenta frente à complexidade que essas novas modalidades de trabalho impõem, de forma a repensar o suporte jurídico a esses trabalhadores.

REFERÊNCIAS

UCHÔA-DE-OLIVEIRA, Flávia Manuella. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional [online]. 2020, v. 45 [Acessado 12 agosto 2021], e 22. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2317-6369000012520>. Epub 13 Jul 2020. ISSN 2317-6369. https://doi.org/10.1590/2317-6369000012520.

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