Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos

Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos

Por Andrizia Gomes Pereira* e Rafael Nascimento de Castro**

Resumo: O presente relato foi escrito como um processo de coser uma colcha de retalhos, a partir do movimento de tecer linhas em busca de sentidos. A autora, uma docente pesquisadora, partiu da própria experiência no contexto do distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19, nesse ano de 2020, e realizou uma análise fenomenológica, recortando trechos de sua narrativa pessoal (em itálico) que remetessem aos sentidos dessa experiência, interpretando-os com base na literatura sobre COVID-19, trabalho, gênero, mulher, maternidade e docência. Como resultados do processo, percebeu que teve sua qualidade de vida afetada quando não pôde exercer sua função no local de trabalho e foi convocada a assumir sobremaneira as tarefas inerentes a seus papeis para além da profissão, sem sair de casa. Concluiu sobre possibilidades de enfrentamento e ressignificação do sofrimento na pandemia pela mulher trabalhadora e mãe: assumir e compartilhar o sofrimento; abrir-se a tarefas autorrealizadoras; organizar-se no tempo.

Palavras-chave: Mulher; Trabalho; Maternidade; Universidade; Docência

O presente texto constitui uma resenha do artigo intitulado “Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos” escrito por uma mulher, mãe e trabalhadora docente, Shirley Macêdo, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Tal artigo foi publicado pela revista do Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas (NUFEN) em 2020, ou seja, no primeiro ano de pandemia pelo Covid-19.

Neste artigo, a autora se propõe a realizar uma análise fenomenológica a partir dos relatos de sua própria experiência enquanto mãe, mulher e trabalhadora a buscar sentidos na vivência destes papéis, durante o período de isolamento social, decorrente da pandemia do Covid-19. A autora apresenta em seu artigo diversos atravessamentos do isolamento social para as pessoas que desempenham esses papéis, demonstrando inclusive fatores de adoecimento, mas também possíveis formas de significação e  enfrentamento.

A autora aponta como o isolamento social propiciou diversos conflitos na rotina das pessoas e em especial na rotina das mulheres. Sobre isso, discorre a respeito de um ponto muito importante quando o tema de gênero é colocado em pauta, que são as divisões estipuladas estruturalmente para cada papel, homem e mulher, atrelando principalmente tal discussão à questão das atividades domésticas, que em sua maior parte é debitado como responsabilidade da mulher. Dessa forma, Porto citado por (Macêdo, 2020, p.189) afirma:

Esse trabalho é marcado por dor, opressão e adoecimento, principalmente diante da naturalização da posição subalterna que a mulher ocupa na sociedade e na hierarquia da estrutura familiar tradicional, que a leva à exaustão diante dos cuidados requisitados por todos os membros da família. (PORTO apud MACÊDO, 2020, P.189)

Em tempos “normais”, já é possível pensar em como essa divisão pode ser exaustiva para mulher, que acaba incorrendo no que é conhecido como “jornada tripla”, ou seja, a mulher é colocada e se vê na responsabilidade e na obrigação de manejar o trabalho da vida profissional, as atividades domésticas e o cuidado com os filhos. Já em tempos pandêmicos, de Covid-19 no qual o isolamento se faz necessário por uma causa maior, a preservação da vida, a mulher se vê ainda mais sobrecarregada, além de impossibilitada de exercer sua vida profissional, que muita das vezes aparece como uma forma de escape, ficando assim em uma rotina de cuidados infinitos com os filhos, a casa e até mesmo com as demandas do parceiro.

Neste sentido, Macêdo (2020) irá discorrer em seu artigo sobre como o trabalho ocupa um lugar de extrema importância na vida da mulher, que, dentro de uma sociedade onde a desigualdade de gênero ainda é muito presente, o trabalho surge enquanto uma possibilidade de reconhecimento, protagonismo e liberdade. Desta forma, a privação da vida profissional, em especial no formato presencial, pode resultar em um sofrimento muito contundente para mulher, que fica impedida de estar nesses espaços de socialização e de reconhecimento, no qual se sente valorizada e pode realizar-se a partir de seu trabalho.

Ademais, o artigo irá apresentar uma certa ideia de culpabilização da própria mulher em relação a si, frente ao conflito que a pandemia não gera, mais intensifica, que é a questão do cuidado com os filhos e com a vida profissional. Essa discussão converge novamente com a questão da desigualdade de gênero, já que, assim com as atividades domésticas, o cuidado com os filhos ainda é em sua maioria imposto para as mulheres que, frente a esta imposição social, pode se perceber enquanto uma mãe ruim quando busca algo para além do cuidado com os filhos, como por exemplo o trabalho e a carreira.

No caso da pandemia, observa-se um agravamento da culpa, já que muita das vezes há um discurso de que a mulher deve aproveitar a oportunidade de estar mais próxima dos filhos, ignorando como o distanciamento da vida profissional e social que o trabalho presencial permitia, pode gerar um grande sofrimento para esta mulher, que, devido a essas concepções enraizadas na sociedade, pode se sentir culpada de não estar exercendo um bom papel como mãe. A autora apresenta e exemplifica com um relato de sua própria experiência, como este conflito pode ser extremamente angustiante para as mulheres que são mães e exercem uma carreira profissional:

A busca desse lugar de estabilidade financeira como concursada me ajudou a dar mais segurança ao futuro dos meus filhos, ao mesmo tempo em que me ajudou no processo de reconhecimento de um lugar que dia e noite eu sonhava em conquistar. Sou reconhecida e me reconheço como uma excelente professora, mas, mesmo que meus filhos digam que sou a melhor mãe do mundo, não me reconheço como uma boa mãe. (MACÊDO, 2020, P. 194)

Observa-se então como há um adoecimento e sofrimento vivenciado por estas mulheres, sobrecarregadas pelas atividades domésticas, culpadas por não suprir uma demanda social que expõe como ideal a mãe que tudo sacrifica pelos filhos, pressupondo que tal papel deveria ter exclusividade na vida das mulheres, ou seja, sem conflitos com vida profissional, logo, sem priorização de carreira. Além disso, observa-se como o trabalho é um fator de extrema importância para saúde mental e, quando impedido, pode ser fator de adoecimento, já que a mulher perde um espaço de protagonismo e reconhecimento.

Conclui-se que uma crise, como a pandemia do Covid-19, pode resultar em diversos problemas anteriormente inexistentes, mas por outro lado, entende-se que uma crise também atua no sentido de desvelar ou tornar mais evidentes realidades problemáticas já existentes, como a desigualdade de gênero elucidada neste texto. Sendo assim, é importante colocar sempre em questão concepções sociais que são estruturais e incorrem em uma manutenção de sujeição e adoecimento de determinado grupo social, como por exemplo as mulheres, que já sofrem com tais questões apresentadas pelo artigo antes da emergência da pandemia, que de certa forma potencializou esse processo e essas contingências, agravando o sofrimento e a angústia dessas mulheres no exercício de mãe e de profissional.

Referências:

MACEDO, Shirley. Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos. Rev. NUFEN, Belém, v. 12, n. 2, p. 187-204, ago. 2020.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912020000200012&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 out.  2021.  http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02rex.33.

*Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e Bolsista de Iniciação científica do Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais (PSITRAPP).

*Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Psicologia, Especialista em de Pessoas, Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e membro do Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais (PSITRAPP).

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