Por Ana Rita Assis Cardoso de Souza*, Camilla Costa Gonçalves** e Danielle Teixeira Tavares Monteiro***
O presente texto constitui uma resenha da Parte III do livro intitulado “O tempo vivo da memória” com autoria de Ecléa Bosi, mestre e doutora em Psicologia Social, pesquisadora de Memória e Sociedade e Professora Emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Ao longo de sua obra, Bosi afirma a importância da memória e seus resgates para um indivíduo, seu contexto social e a própria possibilidade de agir em suas condições. Neste último tópico, a autora traz o termo Desenraizamento para discorrer sobre um fenômeno que não é originário do tempo atual, mas a nossa forma de produção contribui para a ampliação dessa manifestação. Este conceito refere-se aos fatores externos que causam a perda da cultura original de um determinado povo e seus impactos sociais.
Podemos observar o desenraizamento com um exemplo clássico: a colonização portuguesa em 1500.
A conquista colonial causa desenraizamento e morte com a supressão das tradições. A dominação econômica de uma região sobre outra no interior de um país causa a mesma doença. Age como conquista colonial e militar ao mesmo tempo, destruindo raízes, tornando os nativos estrangeiros em sua própria terra. […] O migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas, as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas, a sua maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de louvar a seu Deus… Suas múltiplas raízes se partem. (BOSI, 2013, p. 176)
O modo de produção capitalista, torna esta ação continuamente presente, de maneiras sutis (ou não) que aos poucos vão consumindo qualquer originalidade e tempo outro que não o da produção. Bosi afirma que:
Os teóricos da condição operária já descreveram a segregação da classe trabalhadora do resto da humanidade. A própria modalidade da produção em série cria formas de adaptação desenraizadas. A cultura que daí resulta é forçosamente confinada e repetitiva. (BOSI, 2013, p. 177-178)
Ao divulgar culturas com uma intenção utilitária, ocorre uma manipulação para incorporação da massa, destruindo a diversidade e os saberes populares. Há um debate a respeito dos indivíduos que buscam então esses saberes e maneiras de viver, mas é sempre por meio de pesquisas e não a busca verdadeira de uma reconstrução da vida humana, a diversidade e os saberes populares. Isso faz com que as culturas dissidentes tornem-se uma teoria e não uma prática social. Faz-se necessário então, construir uma cultura em que o foco necessita ser uma vivência constante do presente, analisando o passado para possuir uma natureza humana de militância e mudanças.
Porém, a autora debate que a sociedade capitalista gera uma lógica de produção maior do que a produzida coletivamente, gerando uma destruição do fazer humano. Ela afirma que “Seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termos de desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes já foram arrancadas, mas procurar o que pode renascer nessa terra de erosão.” (BOSI, 2013, p. 177).
Neste sentido, também podemos ponderar sobre o trabalho do pesquisador social. Muitas vezes nos deparamos com realidades tão intrinsecamente ligadas ao modo de viver que a cultura atual oferece, que nossas possibilidades de atuação sobre essas realidades não estão relacionadas a uma completa transfiguração dos processos. Ao contrário, podemos atuar em conjunto como protagonistas deste contexto social para transformar aquilo que é possível.
Uma importante forma de agir sobre esta questão é o resgate das raízes que permanecem mas que precisam ser evocadas pela memória, o trabalho com histórias de vida é um exemplo disso. Podemos convocar potencialidades esquecidas e que nos auxiliam na transformação das nossas relações, sejam as de produção ou as sociais.
Ao nos propor uma saída para o desenraizamento, Bosi debate a atenção segundo Simone Weil, termo que nos ajudará a pensar em outras vivências. Segundo a autora, o olhar pausado, em constante observação do meio externo de maneira a apenas habitar e conhecer os espaços, com uma curiosidade límpida, que não tem outro objetivo a não ser estar e sair de si mesmo. Sem relação de produção, de posse e lucros, mas sim de viver e permitir-se sentir o humano e a vida social crua.
Trata-se, nessa inteligência voltada para o bem, de uma percepção nova. É bom ver uma criança acompanhar dia a dia o crescimento de uma planta em suas pequenas e contínuas mutações; […] Não para ter noções de Botânica ou Zoologia, mas para sair de si mesmo, […] Observando, assim, a criança consegue transcender o ego e procura escutar e ver sinais da natureza e do outro. (BOSI, P. 210)
Em um contexto em que os sujeitos são convocados para a produção capitalista de forma ininterrupta, dissolvendo muitas das possibilidades de agir sem automatismo, é essencial pensar a obra de Bosi como uma convocação para a nossa própria abertura ao mundo e aos movimentos de sair de si e olhar para o outro com genuína atenção. Dessa forma podemos convidar outros para que nos acompanhem nessa busca por relações mais enraizantes e honestas.
Referências:
Bosi, E. (2013). O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 175-219. 151-164.
*Ana Rita Assis Cardoso de Souza: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.
**Camilla Costa Gonçalves: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.
***Danielle Teixeira Tavares Monteiro: Assistente Social, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pela Universidade de Coimbra – Portugal, psicanalista e escritora.
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