Recentemente, nos deparamos com a notícia de que a Câmara dos Deputados aprovou um texto que criminaliza o assédio moral no trabalho.
À primeira vista, essa é uma informação que pode encher os nossos olhos e despertar a sensação de que, enfim, essa violência tão perversa pode estar com os dias contados. Entretanto, sinto desagradar aqueles que por um momento pensaram nessa possibilidade, mas o fato é que algumas questões precisam ser compreendidas em relação a este falso avanço.
No próprio debate sobre o projeto da Lei 4742/01, já houve discordância entre os parlamentares sobre a proposição e, por isso, enquanto a emenda segue para apreciação do Senado, é necessário refletir sobre o real impacto que a lei provocará no combate ao assédio. Afinal, não podemos depositar, de forma passiva, nossas expectativas nesta proposta que, apesar de importantíssima, não deve ser um fator isolado de intervenção, diante da gravidade que representa o assédio moral nos contextos de trabalho.
Há alguns anos, em uma de suas entrevistas, a especialista em medicina do trabalho e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, Margarida Maria Silveira Barreto, já explicitava as falhas presentes nas propostas referente a criminalização do assédio moral no trabalho. Para ela, alguns pontos relevantes não são claros ou tratados no texto como, por exemplo: “a ausência da responsabilidade solidária do empregador; a nulidade da demissão do assediado; assim como a garantia do emprego à possível testemunha e a responsabilidade do empregador quanto à organização do trabalho”.
Concomitante com Barreto, penso que este último aspecto é um ponto crucial. Com a tendência de uma judicialização da questão, surge o risco de promovermos um foco exclusivo na procura de culpados, o que de alguma forma afasta toda a possibilidade de transformação da organização do trabalho.
Precisamos compreender que a inclusão do assédio moral no Código Penal é sim um passo importante na tentativa de conquistas melhores relações de trabalho. Contudo, não devemos ignorar os questionamentos e as críticas aos modos de análises tradicionais. De acordo com Vieira, Lima e Lima (2002), “em geral, nesse tipo de análise, as questões relativas às formas de sociabilidade contemporânea, aos modos de gestão e organização do trabalho são desconsideradas ou apenas citadas como parte do contexto em que o assédio ocorre” (p. 258).
Não podemos mais permitir que este tipo de violência, responsável por consequências traumáticas ao trabalhador, por vezes irreversíveis, continue sendo apontada ou analisada, como sendo um problema de ordem essencialmente individual e psicológica. Não faz sentido tratar apenas o sujeito, se quem está doente é o trabalho e as suas formas de organização (BENDASSOLLI, 2011). Como bem observado por Vieira (2017), o foco das intervenções deve estar nos contextos de trabalho e nas formas como este é organizado, sem desconsiderar os modos gestionários provenientes de um sistema próprio de produção e consumo:
“Se, por um lado, as organizações se queixam do assédio moral, por outro, elas próprias são produtoras desse fenômeno por meio das práticas de gestão e organização do trabalho sustentadas na concorrência, no autoritarismo e no culto ao desempenho” (VIEIRA, 2017, p. 157).
Enfim, a proposta não é promover um movimento contrário à lei que criminaliza o assédio moral no trabalho. Afinal, acredito que tornar crime atos tão perversos, pode sim, de fato, coibir tais práticas. Entretanto, não é o bastante, quando o que se tem em jogo é a saúde física e psíquica de todos nós trabalhadores. Dessa forma, finalizo este texto apoiado na afirmação de Vieira, Lima e Lima (2002), salientando que novos debates em torno do tema necessitam ser constituídos.
Sem querer isentar os que praticam o assédio moral da responsabilidade pelos seus atos, não podemos negligenciar que tais atos ocorrem em um contexto no qual, muitas vezes, são valorizados, incentivados e até mesmo exigidos. Isso significa que a empresa, suas políticas e a forma pela qual o trabalho é organizado não compõem apenas um “cenário” no qual se desenrola o drama do assédio moral, mas são partes constitutivas do problema. Na verdade, são seus determinantes essenciais (VIEIRA, LIMA e LIMA, 2002, p. 267).
Sugestões de leitura:
SOBOLL, Lis Andrea Pereira. Intervenções em Assédio Moral e Organizacional. (Org.) São Paulo: LTr, 2017.
Referências:
BENDASSOLLI, Pedro Fernando. Mal-estar no trabalho: do sofrimento ao poder de agir. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, Vol. 10, n.1, p.63-98, mar., 2011.
VIEIRA, Carlos Eduardo Carrusca. Primeiros auxílios psicológicos a trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho: relato de uma experiência de intervenção em uma mineradora. In: CARVALHO, Carla; PARREIRA, Pedro, MÔNICO, Lisete. Burnout, traumas no trabalho e assédio moral: estudos empíricos e reflexões conceptuais. Coimbra: Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 2017. Cap. 6, p. 119-140.
VIEIRA, Carlos Eduardo Carrusca; LIMA, Francisco de Paula Antunes; LIMA, Maria Elizabeth Antunes. E se o assédio não fosse moral? Perspectivas de análise de conflitos interpessoais em situações de trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. São Paulo, 2002, v.37, n.126, p. 256-268.
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