O que podemos chamar de trabalho? Bom, trabalho é um emprego. Certo? Errado.
Quando escutei pela primeira vez o termo ‘clínica do trabalho’, anos atrás, imaginei um Psicólogo atendendo um paciente no seu consultório e ambos discutindo apenas coisas do trabalho daquela pessoa. O estresse, a pressão, o adoecimento causado por sua atividade.
Desde então, muita coisa mudou e avancei na minha compreensão sobre o que chamamos de uma psicologia aplicada às organizações, e sobre a própria ideia de clínica. Com isso, percebi que existem muitas ideias sobre trabalho difundidas na sociedade que não correspondem à realidade e que dificultam nossa compreensão e atuação.
No decorrer da história, com o desenvolvimento da Psicologia científica e de outras áreas do conhecimento, formou-se aos poucos o que pode se considerar um campo específico de compreensão e intervenção na relação entre trabalho, organizações e pessoas (LEÃO, 2012).
Apesar de possuírem um objeto comum – o trabalho – é difícil dizer que exista uma unidade entre as abordagens da chamada Psicologia Organizacional e do Trabalho – POT (BENDASSOLLI; SOBOLL, p. 59-60, 2011). As chamadas Clínicas do Trabalho são um dos seus segmentos, no entanto, bem menos conhecidas e divulgadas quanto deveriam.
“A clínica do trabalho aproxima-se de uma clínica social, cuja pauta de pesquisa e intervenção é a realidade vivenciada pelos sujeitos.”
“[…] trata-se de uma clínica que, apesar de partir ou pressupor o sofrimento, vai além dele e enfatiza os aspectos criativos e construtivos do sujeito em sua experiência no trabalho.”
São menos convencionais, menos tradicionais e adotam uma postura crítica ao modo de gestão capitalista/neoliberal que vemos muito por aí, baseado na produtividade e no consumo exacerbado.
A ênfase da palavra ‘clínica’ está na “articulação do mundo psíquico com o mundo social” (BENDASSOLLI; SOBOLL, p. 59, 2011), e não no divã ou consultório que a palavra evoca.
Por essa razão, resolvi elencar 07 motivos pelos quais você deveria conhece-las e aprender uma forma diferente de enxergar o mundo do trabalho e pensar nossas relações com as atividades que exercemos no dia-a-dia.
Se você é pesquisador ou profissional da área de gestão de pessoas e trabalho, pode lhe mostrar novos horizontes. Se você é leigo, provavelmente vai querer saber mais sobre o assunto. Nem todos os motivos são científicos, alguns são apenas inspirações pessoais.
1. Trabalho é muito mais que um emprego formal
Trabalho é toda atividade humana que nos distingue do fazer animal. Diz de um confronto do sujeito com a natureza, com os outros e consigo mesmo. Nossa atividade envolve a produção de cultura, de uma história, na mistura de elementos individuais e coletivos. Estamos transformando o mundo e nos transformando ao mesmo tempo. E isso vem de longe, desde que o humano se tornou humano.
Você pode parar de entender trabalho apenas como bater o crachá de oito às dezoito, de segunda à sexta. É um consenso entre essas abordagens não restringir o trabalho à sua institucionalização econômica, ou seja, o emprego (BENDASSOLLI; SOBOLL, 2011).
2. Adota-se uma postura crítica e compreensiva dos fenômenos
Não estou dizendo que os adeptos da Psicologia ‘mais tradicional’ nas organizações não são críticos. No entanto, o questionamento ético e a desconstrução de realidades naturalizadas são marcas das abordagens clínicas do trabalho. Busca-se compreender, transformar, subsidiar a reflexão crítica e aumentar o poder de ação dos sujeitos na situação de trabalho, questionando a organização como um todo.
Há uma busca por tornar consciente os mecanismos de adoecimento do trabalho, as estratégias de defesa coletivas e individuais contra o sofrimento e ir contra a vulnerabilização social.
3. Trabalho como elemento central
Caracterizado por defender a centralidade social e psíquica do trabalho e buscar compreender as manifestações e origens do sofrimento nas situações de trabalho, o campo das Clínicas do Trabalho acredita que nos desenvolvemos psicologicamente por meio do trabalho, tomando-o como objeto central de análise e intervenção.
“Se o trabalho está doente, não basta curar o sujeito, mas intervir no modo como aquele é organizado socialmente e como a atividade é levada a cabo” (BENDASSOLLI, 2011).
Recuperando a sua natureza criadora, busca-se também resgatar a natureza positiva do trabalho. Este último é atividade que constitui nosso vínculo social e nossa subjetividade. Dessa forma, ao pesquisar/intervir com as clínicas do trabalho, estamos tratando do trabalho e não apenas do sujeito.
4. O trabalho que pedem pra você fazer é muito diferente do que realmente você faz
Entre o trabalho que deve ser feito e o que realmente é feito, existe uma grande distância. Os conceitos ergonômicos de trabalho prescrito e trabalho real são a base para compreendermos essas abordagens.
Para a ergonomia, o trabalho prescrito está ligado à definição de tarefa, ou seja, o que é prescrito pela empresa ao funcionário. Em contraposição, o trabalho real está ligado ao conceito de atividade, sendo a adaptação a uma situação real de trabalho.
Muito do que ocorre nesta passagem do prescrito para o real, está diretamente relacionado ao nosso modo de viver o trabalho, mobilizando toda a personalidade e criatividade do sujeito (CLOT, 2010; GUÉRIN, 2001).
5. Você talvez não seja um artista, mas é muito criativo
Quando pensamos em trabalho como qualquer atividade destinada a transformar a natureza e a nós mesmos, assumimos que o fazer humano sempre envolve (cri)atividade. Estamos sempre criando algo.
Não devemos limitar a criatividade aos artistas, como se dependesse de um dom, algo inato a um grupo seleto de pessoas, reconhecida socialmente por valores estéticos de uma obra. Exercemos nossa criatividade diariamente, mesmo que não saibamos disso, nos menores improvisos.
6. Novos métodos, novas ideias e muita construção recente pra acompanhar
De acordo com Lima (2002), a Psicopatologia do trabalho surge a partir de um movimento ocorrido na França, no final da década de 1940, que pode ser chamado de Psiquiatria Social, originando várias correntes de pensamento. No Brasil, o tema ganhou especial relevância à partir das décadas de 80 e 90 do século passado.
O livro “A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho”, de Christophe Dejours -, publicado no Brasil em 1987, é um ícone para este avanço e inspiração a pesquisadores e profissionais da área. Outros investigadores franceses igualmente importantes, como Yves Clot e Yves Schwartz, vêm sendo traduzidos no Brasil apenas nas últimas duas décadas.
Apesar de se mobilizarem em torno de um problema comum, tais disciplinas apresentam caminhos e concepções próprias para intervir na realidade (LIMA, 2011), possuindo grande diversidade epistemológica, metodológica e teórica.
Ler artigos – como os citados nas referências e em nossas indicações – que falam de modo mais abrangente sobre as principais abordagens, pode ser um bom caminho para começar a conhecer a Ergonomia, a Psicossociologia, a Clínica da Atividade, a Psicodinâmica do Trabalho e a Ergologia.
7. Busca-se questionar o sofrimento
Um grande motivador – talvez o principal – para a presença das Clínicas do Trabalho nas instituições, é o surgimento do adoecimento e do sofrimento no trabalho, detectados principalmente em manifestações de mal estar, incluindo episódios ou recorrência de doenças físicas e transtornos comportamentais.
Busca-se compreender o sofrimento em relação com a organização do trabalho, fonte de dificuldades, pressões e desafios na realização da atividade e como os profissionais vivenciam tais situações.
As estratégias adotadas para resistir ou superar o sofrimento são percebidas como respostas essenciais dos grupos de trabalho, individuais ou coletivas, inseridas o tempo todo num contexto social.
A tentativa é não reduzir o adoecimento a uma resposta individual do sujeito, que deve ser tratado e separado da organização. Pelo contrário, deve-se compreender o todo. O ser humano é um ser social. Busca-se, assim, transformar a realidade de trabalho em virtude da preservação e da promoção da saúde, transformando o sofrimento em bem-estar no trabalho.
Referências bibliográficas
ARAUJO, J. N. G. Trabalho e saúde: cenários, impasses e alternativas no contexto brasileiro / José Newton Garcia de Araújo, Mário César Ferreira, Cleverson Pereira de Almeida [Organizadores]. 1. ed. Opção: São Paulo, 2015.
BENDASSOLLI, P. F., SOBOLL, L. A. P. Clínicas do trabalho: filiações, premissas e desafios. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 14, n. 1, pp. 59-72, 2011.
BENDASSOLLI, P. F. Mal-estar no trabalho: do sofrimento ao poder de agir in Revista Mal-estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. X – No 1 – p.63 – 98 – mar/2011.
CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: FabreFactum, 2010.
GUERIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: USP, Fundação Vanzolini, 2001.
LEÃO, L. H. C. Psicologia do Trabalho: aspectos históricos, abordagens e desafios atuais. Estudos Contemporâneos da Subjetividade, vol.2, n.2, p.291-305, 2012.
LIMA, M. E. A. Esboço de uma crítica à especulação no campo da saúde mental e trabalho in JACQUES, Maria da Graça Corrêa; CODO, Wanderley. Saúde mental & trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2002. 420p.
LIMA, M. E. A. Abordagens clínicas e saúde mental no trabalho. In: P. Bendassolli, & L. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para a compreensão do trabalho na atualidade (pp. 227-253). São Paulo: Atlas, 2011.
VIEGAS, S. Trabalho e vida. Conferência pronunciada aos profissionais do Centro de Reabilitação Profissional do INSS. Belo Horizonte, 12 de julho de 1989. Revisada por Paulo R. A. Pacheco.
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