Sabemos que pelo trabalho o sujeito também pode canalizar energias e equilibrar-se psiquicamente, organizando-se interna e externamente para o convívio consigo mesmo e em sociedade. Que esse compreende papel importante em nossas relações de trocas afetivas e econômicas, sendo essencial na construção da nossa identidade, subjetividade e significados.
Considerando todo o significado que o trabalho pode dar em nossas vidas, podemos imaginar o quão a ausência desse pode ser causa de adoecimento e sofrimento. E porque não nos valer dos primeiros versos da letra da canção “Música de trabalho”, interpretada pela lendária banda Legião Urbana, para tentar minimamente compreender esse lugar do não trabalho na vida das pessoas:
Sem trabalho eu não sou nada
Não tenho dignidade
Não sinto o meu valor
Não tenho identidade […](Música: Música de Trabalho; álbum A tempestade; Compositor: Renato Russo; Intérprete: Legião Urbana; 1996.)
Partindo dessa reflexão, é importante pensarmos que em diversos casos, o não trabalho advém de tragédias relacionadas aos acidentes ocorridos justamente nos locais laborativos, como também doenças desenvolvidas ao longo das atividades exercidas.
No Brasil, diversas legislações, normatizações e regras, foram criadas e estabelecidas ao longo da história, na tentativa de minimizar os riscos e fatores que possam causar os acidentes e doenças do trabalho, porém os números ainda são assustadores.
De acordo com dados do último Anuário Estatístico da Previdência Social, somente no ano de 2016 ocorreram 474.736 acidentes e doenças do trabalho. O dado compreende apenas os eventos que foram registrados através da CAT – Comunicação de Acidente de Trabalho, ou seja, o número consequentemente é ainda maior se considerarmos aqueles não informados aos órgãos competentes.
Tenha acesso ao Anuário completo aqui.
Para melhor compreender o que denominamos como acidentes de trabalho, recorro a definição de Carrion (2007) que ao comentar o artigo 167 da CLT afirma:
Acidente do trabalho é aquele que ocorre pelo exercício do trabalho, a serviço da empresa, provocando lesão corporal, perturbação funcional ou doença que cause a morte ou perda ou redução permanente ou temporária da capacidade para o trabalho; isto diz respeito também à causa que, não sendo a única, tenha contribuído para o resultado; pode ocorrer no local de trabalho, a serviço da empresa e nos intervalos ou a caminho (p.177).
Pois bem, durante a minha trajetória profissional, tenho percebido que diante das ocorrências dos acidentes de trabalho nas empresas, criou-se uma cultura de que o foco imediato deve estar em buscar o culpado, como se isso de alguma forma pudesse minimizar as responsabilidades decorrentes do fato.
Para Vieira, (2017) “o debate em torno de um acidente de trabalho constitui-se como um contexto de disputas ideológicas e políticas, baseadas em interesses, frequentemente divergentes, de distintos atores sociais […]” (p. 128).
Claro que é importante uma investigação dos fatores e aspectos que ocasionaram o evento, até mesmo para que metodologias de trabalho sejam melhoradas a fim de promover saúde e segurança, contudo é a forma de como este processo é conduzido que interfere diretamente nas causas e danos psíquicos ao trabalhador envolvido.
E diante de um acidente de trabalho o que realmente é importante no primeiro momento? O que deve ser feito a curto prazo na tentativa de minimizar os impactos do corrido na vida do indivíduo ou grupo? Qual o nosso papel enquanto Gestores, Psicólogos, Administradores e outros profissionais, diante dos possíveis – e até inevitáveis – traumas psicológicos causados por acidentes de trabalho?
Um modelo: Primeiros Auxílios Psicológicos (PAP)
Foi diante dessa minha inquietação que busquei na literatura o suporte que sustentasse de alguma forma, a minha certeza de que a atenção primária deve ser direcionada ao sujeito e não ao evento.
Me deparei com um artigo do Professor Carlos Eduardo Carrusca Vieira (2017), intitulado “Primeiros auxílios psicológicos a trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho: relato de uma experiência de intervenção em uma mineradora” (O livro que contém o artigo sobre o PAP está disponível aqui – Cap. 6, p. 119-140), que traz um exemplo de intervenção, até então desconhecido por mim, denominado por PAP – Primeiros Auxílios Psicológicos.
Conforme Vieira (2017):
Os protocolos de PAP foram desenvolvidos face à necessidade de disponibilizar auxílio psicológico básico e imediato a indivíduos que enfrentam situações de extrema intensidade emocional, tendo como principal objetivo atenuar o sofrimento psíquico decorrente de tais situações e prevenir o desenvolvimento de transtornos mentais (p. 120)
Mesmo que os PAP ainda sejam utilizados nos contextos de emergências e desastres de outras naturezas, para as empresas pode ser ferramenta importante na prevenção de transtornos psicológicos advindos de acidentes de trabalho, contribuindo para a promoção de saúde dos trabalhadores vítimas de acidente (VIEIRA, 2017).
Para o autor o apoio psicossocial ao indivíduo neste caso deve ser estratégia primordial para a prevenção de patologias mentais e “este protocolo organiza-se em torno de cinco princípios básicos, especificamente: proteger, dirigir, conectar, tratar e providenciar cuidados especiais” (VIEIRA, 2017).
Neste momento me recordo de um exemplo e experiência vivenciada por mim enquanto Gestor de Recursos Humanos de uma empresa na qual atuei, fato esse que me ensinou muito e por isso estou ainda mais convicto de que, diante da situação de um acidente de trabalho, as atenções imediatas devem ser voltadas para as intervenções psicossociais necessárias para a redução de danos ao trabalhador.
Após uma fatalidade…
Trata-se de um jovem rapaz que perdeu a visão de um olho após uma fatalidade no trabalho. Não é a minha intenção fazer a análise deste acidente, ou trazer detalhes do ocorrido, porque o que se torna importante neste caso é o sofrimento e angústia do operário e de sua família, que eu pude acompanhar durante todo o processo. Na ocasião, a empresa ofereceu todo o suporte e arcou com todos as despesas necessárias, incluindo os gastos médicos, transporte, locomoção e acomodação da família, que residia em outro estado.
Contudo o que me chamou a atenção, foi a necessidade do desdobramento e o equilíbrio emocional exigido da equipe, para lidar com aquela situação de desmotivação, sofrimento, desilusão e amargura vivenciada pelo trabalhador. Cuidar dos procedimentos burocráticos foi tarefa fácil para mim e para a Psicóloga, uma colega de trabalho que dividiu essa experiência.
O nosso desafio maior foi convencer a família e principalmente ao jovem rapaz, que a vida não estava perdida, que a fatalidade ocorrida não era o fim, que ele ainda era capaz de trabalhar e conquistar todos os seus objetivos. Em síntese, o nosso papel diante da experiência traumática vivenciada por ele, foi restabelecer o funcionamento psicológico, resgatando a capacidade de reflexão face a si mesmo e ao seu meio.
Confesso que não é simples, é preciso ir além, é primordial criar uma relação afetiva capaz de superar os muros da empresa, que propicie enxergar a finitude de possibilidades que o mundo nos oferece, mesmo que fisicamente eu só consiga ver com um dos meus olhos.
Atualmente, esse jovem está muito bem, retomou a vida em sua cidade natal, trabalha, namora, se diverte, vive! É claro que não é meu propósito afirmar que as ações tomadas neste caso se referem à implementação dos PAP, até mesmo porque, como já dito anteriormente, tal intervenção era ainda desconhecida por mim e acredito que também para minha colega de trabalho. Além disso, vale ressaltar que quando referimos aos PAP no contexto de trabalho, “[…] torna-se necessária a instrumentalização dos profissionais para a sua implementação” (VIEIRA, 2017, p. 137).
Auxílio psicossocial imediato
Contudo, o que fica evidente é que a intervenção psicossocial imediata oferecida aos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho, pode contribuir para a prevenção de possíveis distúrbios mentais, sejam elas adotadas por meio dos PAP ou não.
O que não devemos esquecer é que os acidentes de trabalho são eventos dramáticos que levam os envolvidos a vivenciar emoções intensas e extremas, sendo relevante o nosso olhar para medidas rápidas e eficientes. Pensar no auxílio psicossocial imediato como estratégia pode literalmente salvar vidas e consequentemente mudar o cenário traumático que envolvem os acidentes nos contextos de trabalho.
Entretanto, importante ressaltar que mesmo sendo essencial a oferta dos PAP, isso não exime, de maneira alguma, que as organizações atuem de forma preventiva, com o objetivo de evitar os acidentes de trabalho, as doenças ocupacionais e as situações de violência, com mudanças e adequações necessárias e substanciais nas condições e na organização do trabalho.
Leia também:
- O trabalho nas indústrias frigoríficas em “Carne, Osso”
- Depressão nos ambientes de trabalho: um problema coletivo
- Síndrome de burnout: esgotamento profissional
Referências
BRASIL. Anuário Estatístico da Previdência Social – 2016. Disponível em: http://sa.previdencia.gov.br/site/2018/08/aeps2016.pdf Acesso em: 27 set. 2018.
CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho. 32. ed. atual. Por Eduardo Carrion. São Paulo: Saraiva, 2007.1420 p.
VIEIRA, Carlos Eduardo Carrusca. Primeiros auxílios psicológicos a trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho: relato de uma experiência de intervenção em uma mineradora. In: CARVALHO, Carla; PARREIRA, Pedro, MÔNICO, Lisete. Burnout, traumas no trabalho e assédio moral: estudos empíricos e reflexões conceptuais. Coimbra: Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 2017. Cap. 6, p. 119-140.