Por Gabriel Silveira Barbosa* e Mara Marçal Sales**
O presente texto se propõe a ser uma resenha do terceiro capítulo (“Cinismo e objeto totalitário”) do livro escrito por Slavoj Zizek de nome “Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia”.
O capítulo escrito por Zizek se prestou a traçar uma análise das características dos conceitos de ideologia, do estatuto do objeto totalitário e, finalmente, das nuances do sujeito contemporâneo, marcado pelo “narcisismo patológico”. Sua construção argumentativa tem por objetivo demonstrar uma virada na modalidade do discurso ideológico ‘tradicional’ para um modelo definido como cínico. Posteriormente, se apropriando do discurso lacaniano, o autor se põe a analisar a estrutura totalitária, identificando que o cinismo se estende estruturalmente fim a caracterizar um modelo específico de sujeito. Esta resenha se enfocará na discussão sobre a ideologia e o novo modelo cínico apresentado por Zizek.
O autor, primeiramente, pousa sua atenção sob o fenômeno do conceito de ideologia e sua ‘virada’ de uma definição clássica para uma definição ‘atualizada’. A definição clássica de ideologia possui suas raízes em Marx, seguindo a fórmula “disso eles não sabem, mas o fazem. Atribui-se à ideologia, portanto, uma certa ingenuidade constitutiva (…) seu próprio conceito implica uma distância entre o que efetivamente se faz e a “falsa consciência” que se tem disso” (ZIZEK, 1992, p.59). Tal formulação carrega uma compreensão de mundo onde a divisão entre classe dominante, produtora de narrativas assimétricas e população ‘alienada’ seria libertada por meio de um exercício crítico ideológico, exercício que iria destilar as condições efetivas de reprodução dos discursos e provar que, ulteriormente, “o universal, na verdade, está preso ao particular” (ZIZEK, 1992, p.59).
A virada conceitual acerca da definição de ideologia encontra seu oráculo na formula postulada por Sloterdijk em seu livro ‘A crítica da Razão Cínica”. Ao invés de uma falsa consciência, como axiomado por Marx, a razão cínica carrega a seguinte elaboração: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem”. O estatuto da ideologia cínica carrega em seu cerne a cristalização do paradoxo da falsa consciência esclarecida, onde “estamos perfeitamente cônscios da falsidade, da particularidade por trás da universalidade ideológica, mas ainda assim, não renunciamos a essa universalidade”. A Weltanschauung cínica se edifica e se mantém numa inversão orwelliana da realidade, onde há o interesse compartilhado de não romper com tais formulações e, contra intuitivamente, “legitimar a distância” (ZIZEK, 1992, p.60) entre a prática e os conceitos basilares.
Zizek introduz aqui um questionamento sobre a ineficácia do método crítico-ideológico para lidar com o cinismo e abre a problemática: “o ‘cínico’, que ‘não acredita nisso’, que sabe muito bem da inutilidade das proposições ideológicas, desconhece, no entanto, a fantasia de estrutura a própria ‘realidade’ social. (ZIZEK, 1992, p.60). Partindo novamente de Marx, da reflexão sobre a reificação, o psicanalista aponta que, a exemplo, no caso do dinheiro, sabe-se que ele em si não possui nenhuma propriedade metafisico-singular, mas agimos como se possuísse: “O que os indivíduos ‘não sabem’, o que eles desconhecem é a ilusão fetichista que norteia sua própria atividade efetiva” (ZIZEK, 1992, p.62). Após essa reflexão, Zizek constrói sua tese acerca da ideologia reiterando que a fantasia ideológica opera na realidade como uma ilusão que influencia e molda as nossas possibilidades de fazer. Daí se conclui que o paradoxo cínico somente se enuncia “ao identificarmos a ilusão atuante na própria realidade: ‘eles sabem muito bem que, em sua atividade real, pautam-se por uma ilusão, mas mesmo assim, continuam a fazê-lo”. (ZIZEK, 1992, p.63).
Seguindo sua análise, os desdobramentos da “fantasia ideológica” se delineiam cada vez mais: o furo que a ficção cínica vem suprir justamente uma “falta no cerne do Outro institucional” (ZIZEK, 1992, p.64). Essa falta se origina na inconsistência que existe na instauração das grandes narrativas ideológicas que norteiam os modos de ser, de poder e dever dos sujeitos. Ao assumir e incorporar as ficções está no cerne da razão ideológica cínica, é o que sustenta as interações e a estrutura societal-política.
Se apropriando da discussão apresentada na resenha “A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral”, o discurso neoliberal marcou a sua prioridade que tornou-se solidificar um discurso ideológico que regrasse o indivíduo pela ótica empresarial de funcionalidade e produtividade, apropriando-se de uma perspectiva mais psicologizada. A consolidação hegemônica do modelo empresa nas relações humanas proporcionou uma forma de cisão no sujeito, cisão que de forma alguma se deu de forma pacífico-voluntária, aliás, demonstrou ser uma forma de violência simbólico-afetiva. (SAFATLE, 2020)
Em suma, articulando a discussão trazida por Zizek à narrativa ideológica neoliberal, o mundo contemporâneo apresenta o cinismo como característica fundante das narrativas ideológicas, onde sua função é a de apreender e preencher a falta institucional. O neoliberalismo como sistema político-econômico-social possui tais narrativas e se apropria do cinismo na medida em que tem como objetivo e ‘obrigação’ reproduzir tais ficções de maneira que o sistema se mantenha, ainda se sua formulação é paradoxal.
Referências:
SAFATLE, Vladimir; DA SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. São Paulo: Autêntica, 2020.
ZIZEK, SLAVOJ. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
*Gabriel Silveira Barbosa, estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, monitor do Laboratório de Psicologia do Trabalho e Organizações da Praça da Liberdade- LAPOT PUC Praça e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp
** Mara Marçal Sales, psicóloga, Mestre em Psicologia Social (UFMG), Doutora em Educação (UFMG), professora adjunta IV da Faculdade de Psicologia da PUC Minas. Coordenadora do Laboratório de Psicologia Organizacional e do Trabalho da PUC