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O sofrimento e seus destinos na gestão do trabalho

Por João Paulo Tomayno de Melo* e Daniela Piroli Cabral**

A presente resenha analisou o artigo “O sofrimento e seus destinos na gestão do trabalho”, que busca compreender as significações atribuídas ao sofrimento relacionado ao trabalho, abordando a temática segundo a luz da psicanálise freudiana. Para buscar elucidar as nuances do tema, os autores realizaram a pesquisa em uma empresa pública do setor de serviços, localizada na cidade de Belo Horizonte, que passou por transição para sociedade de economia mista, num processo de mudança organizacional abrupta com forte viés de automatização, o que teve impacto significativo na saúde dos trabalhadores.

Um ponto que invariavelmente chama a atenção é que nessa pesquisa, ao contrário da maioria de seus pares, os autores também têm o cuidado de abordar o sofrimento por parte dos gestores das empresas, se baseando para isso na pesquisa de Brant e Dias (2004). Essa intenção é compreensível, tendo em vista que embora os gestores estejam em um nível hierárquico superior ao da maioria dos demais funcionários, ele também compõe o quadro de assalariados que dependem do emprego e da renda proporcionada por ele para sua subsistência.

Sendo assim, os autores abordam a questão da estrutura e gestão do trabalho, citando como as atualizações tecnológicas tornam algumas funções humanas obsoletas e acabam por substituir e precarizar a mão de obra. Assim, buscam explicitar e desassociar o sofrimento da classe trabalhadora de algo individual e psicológico, colocando em questionamento se o adoecimento em massa não se justificaria pela própria característica do trabalho moderno e da forma como ele se organiza.

Como forma de contextualizar o assunto, os autores explicam porque optaram por fazer uso da palavra sofrimento, sem adjetivos que complementem o termo. Segundo os autores, a atribuição de um adjetivo culminaria em uma fragmentação do termo. Recorrem, logo mais, a um detalhamento conceitual e etimológico das maneiras de definir o sofrimento segundo as palavras alemãs angst, furcht e lust utilizadas por Freud em sua obra, que perderam parte de sua nuance original quando traduzidas para línguas estrangeiras, incluindo o português.

Enquanto angst, traduzida por vezes como ansiedade ou angústia, o termo no idioma original remete ao medo, e liga-se a uma prontidão reativa ao perigo (Brant e Gomes, 2005). Já o termo furcht é relacionado na obra original a um pavor imediato. Por sua vez, o termo lust é empregado em relações de prazer e sofrimento, como uma descarga e traz um alívio para um desconforto (Brant e Gomes, 2005).

Os autores pontuam que o sofrimento segundo a teoria freudiana não deve ser o único viés de análise para o sofrimento relacionado ao trabalho. Dessa forma, intenciona evitar os esforços geracionais de individualizar o adoecimento dos funcionários, conforme é discutido adiante no artigo.

A pesquisa foi realizada com treze trabalhadores, oito familiares de trabalhadores, treze gestores e oito profissionais de saúde de uma mesma empresa. O fator preponderante na fala desse último grupo era a dificuldade em identificar as origens fisiológicas das dores dos trabalhadores, o que acabava por não serem legitimadas dentro do quadro de saúde.

Muitas vezes, essas dores eram provenientes de um aumento de trabalho, acúmulo de funções e intensificação das tarefas. As mudanças organizacionais culminaram em uma série de adoecimentos por parte dos funcionários, mas que não eram reconhecidos como genuínos, em função da falta de uma base biológica. Os autores pontuam que, diferente da dor, o sofrimento possui uma dimensão política, uma vez que envolve a presença do outro (Brant e Gomes, 2005), envolvendo questões como a falta de reconhecimento, o sentimento de desemparo e a baixa realização com as tarefas realizadas, entre outros.

Outra questão abordada foram as maneiras de lidar com esse adoecimento em massa, que acabaram por muitas vezes agravar a situação dos trabalhadores. Dentre elas, parte do artigo foi dedicada a medicalização dos funcionários, que se define pela prática de aplicar tratamentos medicamentosos para “curar” ou “abrandar” as dores físicas e o sofrimento. De fato, a empresa contava até mesmo com um tipo de farmácia própria para atender a demanda crescente de funcionários medicados. Casos como tendinite e LER (lesão por esforços repetitivos), além de depressão e melancolia, todos eram tratados inicialmente através de invenções farmacológicas.

Uma outra maneira de lidar com os adoecimentos era a licença médica. Essa metodologia era tida como terapêutica, mas tendia a gerar insegurança por parte dos trabalhadores que por vezes se viam forçados a ficar afastados, e outros que temiam não mais voltar ao trabalho. Essa situação também agravava os quadros de sofrimento, que era combatida novamente através da medicação. Os momentos de perícia também geravam ansiedade, visto que determinava a aptidão ou não para o retorno ao trabalho.

Haviam ainda, os casos de hospitalização que seguiam a licença médica. Por vezes, quando os profissionais responsáveis julgavam necessário, os trabalhadores eram internados logo que voltavam ao trabalho por não serem considerados prontos para a reinserção. Esse ciclo de psiquiatrização atribuía ao sujeito a responsabilidade pela suposta inaptidão, culminando em sentimentos de culpa, que eram reforçados pelos discursos de cunho corporativista.

O estágio final desse processo era a aposentadoria por invalidez, que muitas vezes era vista pelos trabalhadores como uma vitória por afastarem o motivo principal do adoecimento e sofrimento. Além disso, também há a dimensão de uma certa compensação, como observado nas falas de alguns entrevistados. Segundo essa argumentação, os anos de sofrimento e as sequelas desenvolvidas em razão das condições precarizadas de trabalho.

Por fim, os autores argumentam que esse tão discutido sofrimento não pode ser normatizado e adequado apenas a um destino. Ademais, é importante readequar os discursos, bem como os entendimentos acerca das razões do agravamento do sofrimento desses trabalhadores. A postura dos autores é explicita no que diz respeito a elucidar que essa situação é perpetuada não pelas características individuais dos funcionários, suas aptidões e supostas fraquezas, mas pela estrutura organizacional em que estão inseridos, bem como as constantes mudanças que precisam enfrentar.

Um comentário pertinente, que parece ser compartilhado pelos autores, é de que o modelo econômico vigente reforça o desenvolvimento de relações de trabalhos adoecedoras. O trabalhador não é responsável por esse sofrimento de gênese organizacional e a maneira de resolver esse problema passa necessariamente pela revisão desse modelo. Além disso, autores enfatizam o viés transformador que o sofrimento carrega em si e ressalta a dimensão da subjetividade dos trabalhadores como meio de enfrentar a dinâmica do adoecimento no trabalho e as novas práticas de cuidado nas relações de saúde e trabalho.

Referências:

BRANT, L.C., MINAYO-GOMEZ, C. (2005) O sofrimento e seus destinos na gestão do trabalho. CIÊNCIA E SAÚDE COLETIVA, v. 10, n. 4, p.939-952.

*João Paulo Tomayno de Melo, estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, escritor, estagiário da equipe de Psicologia da ASSPROM (Associação Profissionalizante do Menor) e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.

**Daniela Piroli Cabral, É Terapeuta Ocupacional (UFMG) e Psicóloga (PUC Minas), mestranda em Processos Psicossociais pela PUC Minas. Trabalha como Psicóloga na Gerência Ocupacional da Assembleia Legislativa de Minas Gerais(ALMG) e também em consultório particular. É membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.

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