Por Ana Rita Assis Cardoso de Souza*, Camilla Costa Gonçalves** e Danielle Teixeira Tavares Monteiro***
O presente texto constitui uma resenha do primeiro capítulo do livro intitulado “O tempo vivo da memória” com autoria de Ecléa Bosi, mestre e doutora em Psicologia Social, pesquisadora de Memória e Sociedade e Professora Emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
O capítulo é iniciado a partir de referências críticas às diferentes posições sociais ao se contar uma história. Como afirma a autora: “A história, que se apoia unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás dos episódios.” (Bosi, 2013, p. 15). Ela explicita a valorização das histórias políticas e institucionais e uma redução do valor das histórias de vida, o que reproduz relações de poder instituídas. Portanto, perde-se alguns fatos importantes da memória, como a subjetividade dos sujeitos: as emoções, os costumes e as diversas visões de mundo, o que condiciona a uma leitura reduzida do contexto sociohistórico.
A memória é tratada como um objeto de estudo, forma de recuperação de acontecimentos e como um mecanismo de resgate de identidade. A autora utiliza o conceito de enraizamento, no qual compreende o impacto da relação da memória com elementos que constituem contexto, e que permite sua construção e manifestação. Para ela, relembrar a história é uma forma de aprender e constituir o presente e a si mesmo. Escutar uma história de vida pode ser um mecanismo de compreensão de ideologias que unem ou diferenciam grupos sociais. O rebaixamento e descontinuidade da memória individual pode contribuir para o desenraizamento dos sujeitos tanto de forma identitária como de forma espacial – fenômeno observável, por exemplo, nas relações sociais atuais, nas quais há maior valorização dos vínculos mercantis e menos dos vínculos afetivos, como afirma Fromm (1983) – mas o contrário disso – o enraizamento – pode evocar a vontade e constituir uma força motriz para projetos coletivos futuros (Bosi, 2013).
A história oral foge da unilateralidade e faz surgir contradições na História oficial, oferece voz a grupos historicamente silenciados e nos permite compreender acontecimentos para além dessa História, sendo capaz de acolher as diferentes percepções e compreender criticamente a lógica de privilégios. Portanto, durante a escuta, é preciso observar o que é esquecido, tendo o passado como construção do presente/futuro. O pesquisador social precisa dispor de uma “Sensibilidade diacrônica”, ou seja, ser capaz de compreender que um mesmo evento é composto de oposições e diferentes matrizes históricas, para então buscar as mudanças e devires (Bosi, 2013).
Sob a ótica de Walter Benjamin, Bosi afirma que as memórias do sujeito são também compostas a partir das relações com os próprios objetos. A autora discorre a respeito da recordação de um objeto que tem valor biográfico e dos afetamentos causados, e sobre peças que constituem puramente status social, como recordação de um lugar de troca. Para a autora: O burguês, enquanto agente e produto do universo de valores de troca, não pode refugiar-se autenticamente na esfera da intimidade afetiva, pois até mesmo os seus objetos biográficos podem converter-se – e frequentemente se convertem – em peças de um mecanismo de reprodução de status. (Bosi, 2013, p. 29)
O pesquisador social precisa atentar-se para a forma da narrativa do sujeito, como a história é contada, a partir de quais perspectivas e como a ideologia afeta a identidade social do sujeito.
Utilizando-se da teoria de Henri Bergson, a autora afirma o papel da memória no ser presente, manifestando que “começa-se a atribuir à memória uma função decisiva na existência, já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações” (Bosi, 2013, p. 36). O indivíduo sem memória perde a própria percepção do mundo e de si mesmo.
As teorias apresentadas, produzidas e discutidas por Bosi no capítulo presente afirmam a importância das pesquisas direcionadas à memória, que são atravessadas pela escuta de histórias não oficiais. Para a pesquisadora: “[a memória] é mais que um reviver de imagens do passado.” (Bosi, 2013, p. 45). A partir da ótica da autora é possível compreender que a oralidade pode ser um mecanismo potente para a construção e recuperação da identidade dos sujeitos, uma outra forma de conhecimento da história institucional que carece de pontos de vista diversos e também uma maneira de elucidar o presente (Bosi, 2013).
Com isso, o texto de Ecléa Bosi auxilia sobremaneira na construção e desenvolvimento de metodologias psicossociológicas que possibilitem maior compreensão do contexto sociohistórico, através de uma apreensão da realidade a partir do ponto de vista e da memória de quem a vivência. Os apontamentos e argumentos da autora ensejam uma inversão na lógica de pesquisa no que se refere à valorização do conhecimento dos sujeitos e das relações com o meio, questionando o poder dominante e construindo instrumentos de pesquisa alinhados com intervenções psicossociais capazes de impulsionar processos autônomos, porém coletivos, de mudança.
Referências:
Bosi, E. (2013). O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial.
Fromm, E. (1960). Análise do Homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
*Ana Rita Assis Cardoso de Souza: Estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.
**Camilla Costa Gonçalves: estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e membro do núcleo de pesquisa em Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais – Psitrapp.
***Danielle Teixeira Tavares Monteiro: Assistente Social, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pela Universidade de Coimbra – Portugal, psicanalista e escritora.