Louis Le Guillant (1900-1968) foi um psiquiatra francês considerado um dos fundadores da Psicopatologia do Trabalho, da Reforma Psiquiátrica e da Psicoterapia Institucional na França, contribuindo muito para o desenvolvimento de uma abordagem clínica em análise do trabalho. Hoje, quando estudamos Psicologia do Trabalho, passamos obrigatoriamente – ou, pelo menos, deveríamos – por alguns textos do autor e entendemos a sua atualidade.
No Brasil, de acordo com Souza e Athayde (2006), a contribuição de Edith Seligmann-Silva foi decisiva para que Le Guillant fosse primeiramente conhecido. Afinal, a partir de sua colaboração junto ao movimento sindical de São Paulo, Seligmann-Silva publicou, em 1986, o artigo histórico “Crise econômica, trabalho e saúde mental”, onde apresentava o campo que denominou Saúde Mental e Trabalho e citava Le Guillant. O autor seria um pouco mais conhecido depois, com a tradução e publicação, em 1987, no Brasil, de “A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho”, de Christophe Dejours.
Todavia, é com a publicação de “Escritos de Louis Le Guillant: Da ergoterapia à psicopatologia do trabalho”, em 2006, que Maria Elizabeth Antunes Lima faz o que considera uma tentativa de resgatar uma dívida para com esse autor, crucial na França, porém ainda pouco utilizado e difundido no Brasil.
Le Guillant, como psiquiatra de esquerda, aproximou campos até então distintos: o mundo dos trabalhadores, a Medicina do Trabalho e a Psiquiatria, promovendo um encontro entre o saber operário e o saber científico, o que produziu bons frutos e a ainda influencia a nossa forma de conceber uma análise-intervenção do trabalho (Souza & Athayde, 2006).
O psiquiatra francês procurou desenvolver pesquisas nesse campo, que se passou a denominar ‘Psicopatologia do Trabalho’. Le Guillant “buscava estabelecer conexão entre os problemas psicopatológicos, as condições de existência e as situações vividas pelo doente. Desejava, assim, estabelecer verdadeiros nexos causais que ligassem fatos realmente vividos em um determinado ambiente a uma situação concreta de adoecimento” (Souza & Athayde, 2006, p.11-12). A partir daí seria possível realizar uma ‘nova clínica’, que considerasse as situações reais de vida e de trabalho.
Dentre os principais estudos – como a pesquisa sobre a condição de empregada doméstica e a pesquisa sobre condutores de locomotiva – encontra-se um dos textos essenciais para quem procura se familiarizar com o campo da análise do trabalho e busca estabelecer conexões entre condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores: A neurose das telefonistas.
Publicado em fevereiro de 1956, na La Presse Médicale, o artigo La nevrose des téléfonistes trazia uma pesquisa que havia sido realizada no serviço de Villejuif – comuna francesa nos subúrbios de Paris – sobre a profissão de telefonista. O texto foi seguido pelo artigo, publicado em 1957, Quelques notes méthodologiques a propos de la névrose des téléfonistes, onde, para Souza e Athayde (2006), Le Guillant seria mais incisivo em suas críticas à Medicina, por não considerar, adequadamente, a conexão entre condições de vida-trabalho e problemas de saúde. Contudo, por enquanto, só li o primeiro.
‘A neurose das telefonistas’
No texto de 1956, Le Guillant faz duas considerações iniciais: a frequência conhecida e crescente de alterações mentais e ‘nervosas’ menores nesta categoria – das telefonistas – e a natureza de sua atividade. Após citar estudos anteriores – Julhard (1910), Fontegne e Solari (1918) e S. Pacauld (1919) – que já descreviam o que chama de ‘Síndrome Geral de Fadiga Nervosa’, o autor afirma que “pode-se estabelecer uma sistematização aproximada, descrevendo essencialmente: uma ‘síndrome subjetiva comum’ de fadiga nervosa; alterações do humor e do caráter; alterações do sono; um conjunto de manifestações somáticas variáveis; a repercussão destas diferentes alterações sobre a vida das trabalhadoras”.
Sobre a síndrome subjetiva comum de fadiga nervosa, Le Guillant indica que era comum encontrar “um sentimento de abatimento profundo”, ou seja, um aniquilamento após o trabalho, “atitude […] acompanhada de uma espécie de indiferença, de um ‘desgosto de tudo'”. Além disso, o autor indicava “queda significativa de suas faculdades intelectuais” com alterações na memória e na atenção, assim como a “intoxicação por frases profissionais”, quando as telefonistas empregavam expressões profissionais de forma automática em seu cotidiano fora do trabalho.
Quanto às alterações do humor e do caráter, Le Guillant indicava que “muitas das telefonistas têm a impressão de ter mudado profundamente sob este ponto de vista. Anteriormente eram calmas, tímidas, agora se tornaram nervosas, irritadas, agressivas, não podem suportar a menor contrariedade ‘sem fazer um drama’”. As telefonistas apresentavam, frequentemente, períodos de depressão, humor triste, com desgosto de viver e ideais de suicídio, assim como diversos tipos de distúrbio do sono.
Neste ponto, é importante observar que o psiquiatra já percebia o que se tratava de uma utilização, pela empresa, do estado de agitação provocado pelo trabalho, em prol do próprio sistema que o produzia. Ao dizer sobre o ‘estado de nervos’ das operadoras, Le Guillant afirma que “este nervosismo é mantido pelo próprio trabalho, que ao mesmo tempo o exige e o cria […] Pode-se dizer, sem exagero, que o nervosismo das telefonistas é, nas condições atuais, uma doença necessária ao cumprimento de suas tarefas profissionais: são as mais nervosas que apresentam melhor rendimento. O sistema de controle e anotação favorece este estado de coisas”.
Todavia, ao dizer sobre a identificação dos elementos do trabalho mais patogênicos, Le Guillant se impressiona ao “constatar que o trabalho em si mesmo – isto é, sua natureza particular entre outras atividades profissionais, as operações ou mesmo as relações com os usuários que ele comporta – é bem pouco questionado pelas empregadas”. Ademais, os dois elementos principais citados foram: o rendimento e o controle.
Sobre o rendimento, o ritmo e a rapidez das operações foram julgados como excessivos. É esse ritmo que traduz no trabalhador a impressão de estar ‘sobrecarregado’, ‘pressionado’, ‘enervado’ pela execução de tarefas relativamente simples de serem cumpridas. O autor indica que a média estabelecida produzia “horror” nas operadoras, que disputavam comunicações para manter as suas médias. A organização do trabalho produzia competição.
Sobre o controle, o mesmo era efetuado de duas maneiras: por mesas de escuta e por ‘controladoras’ que circulavam atrás das operadoras. As ‘escutas’ serviam para controlar o ‘modo operatório fixo’, ou seja, frases fixas e determinadas que devem ser ditas ou evitadas, assim como controlar a distração e a ‘amabilidade’. Já as ‘controladoras’ estão lá para ‘impulsionar’ e supervisionar o trabalho. Le Guillant não deixa de citar que as telefonistas precisavam pedir permissão para satisfazer suas necessidades fisiológicas, com tempo limite de cinco minutos.
Para o autor, “tudo isto cria uma atmosfera que, se não chega a ser de medo, pelo menos é de apreensão continua, um ‘ambiente sufocante’, um sentimento de humilhação. A impressão exasperante de serem ‘dirigidas como crianças’, de estarem na escola maternal, de serem incompreendidas e injustamente repreendidas”. Outras condições citadas apenas reforçam esses elementos, como a automatização que, àquela época, cada vez maior, causava grande monotonia. As telefonistas sofriam por “trabalhar como robôs”, sendo desprovidas de qualquer autonomia, o que provocava desencorajamento e ‘acessos de raiva quando elas percebem até que ponto seu trabalho é pouco interessante’.
Ainda sobre o controle, o autor verifica que, “mesmo dentro da profissão, são observadas diferenças muito sensíveis segundo o tipo de trabalho efetuado”. Postos com menor vigilância e exigências de rendimento menos rigorosas, por exemplo, são privilegiados e mais desejados pelas operadoras. A comparação entre esses grupos na mesma profissão permitiria “evidenciar a influência das diferentes condições ‘técnicas’ ou psicológicas do trabalho”.
Considerações
Já em suas conclusões, Le Guillant indica que ser artificial e falso considerar isoladamente a vida profissional ou a vida pessoal de quem quer que seja, quando se trata de estudar os efeitos patogênicos do trabalho. Todavia, afirmava que, a impressão atual, era que “seu trabalho, suas condições materiais e ‘morais’ que parecem, no essencial, ser responsáveis pela neurose das telefonistas” (p.12).
O psiquiatra francês afirma que “a síndrome que descrevemos não é certamente própria das telefonistas. Ocorre em todos os empregos que exigem, com ou sem fadiga muscular, um ritmo excessivamente rápido de operações e propiciam condições de trabalho objetiva ou subjetivamente penosas: mecanização dos atos e monotonia, vigilância rígida, relações humanas na empresa alteradas, etc.”. Dessa forma, afirma a necessidade de se tratar as causas que as provocam: as condições de trabalho desfavoráveis, além de “fazer reconhecer como doenças profissionais as afecções nervosas e mentais cada vez mais numeradas, ligadas ao esgotamento nervoso e que as novas formas de trabalho conduzem” (p.14).
Em suma, já em 1956 e 1957, Le Guillant levantava questões ainda válidas e necessárias, visto que os trabalhadores se envolvem e se implicam subjetivamente em seu trabalho, havendo, em certo grau, o surgimento de desordens derivadas da realização de tarefas repetitivas e desinteressantes. Ou seja, tais dimensões devem ser consideradas em qualquer análise séria e comprometida com a ética no trabalho.
Para Lima (2006), àquela época, Le Guillant “estava ciente da complexidade do objeto sobre o qual se debruçava ao perceber nele essa dupla potencialidade e, portanto, ao constatar que, dependendo do seu modo de organização e das condições sob as quais é realizado, o trabalho pode atuar como um recurso terapêutico ou favorecer o adoecimento” (p.109). Dessa forma, “trata-se de um autor cujo valor já foi posto à prova do tempo, conquistando um lugar entre os clássicos de sua disciplina, graças à sensibilidade com a qual abordava cada tema, ao interesse especial que desenvolveu pela pesquisa e à perspicácia que lhe permitiu identificar os verdadeiros problemas a serem atacados” (p.111).
A tradução produzida por Denise Monetti e Leda Leal Ferreira, da FUNDACENTRO, e que serviu de base para este artigo está disponível aqui. Recomendamos a leitura. Além disso, o que parece ser o artigo original – porque não fiz aquela pesquisa rigorosa – pode ser visto aqui.
Referências
Lima, Maria Elizabeth Antunes. (2006). O resgate de uma dívida: resenha do livro Escritos de Louis Le Guillant – da Ergoterapia à Psicopatologia do Trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2006, vol. 9, n. 2, pp. 109-114. Recuperado em 17 de julho de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cpst/v9n2/v9n2a09.pdf
Souza, Paulo César Zambroni de, & Athayde, Milton. (2006). A contribuição da abordagem clínica de Louis Le Guillant para o desenvolvimento da psicologia do trabalho. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6(1), 6-19. Recuperado em 17 de julho de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812006000100002&lng=pt&tlng=pt.