Quebrando o tabu: o trabalho de um malabarista de rua

Quebrando o tabu: o trabalho de um malabarista de rua

Quem nunca parou em um semáforo e automaticamente fechou os vidros do carro, ao perceber que alguém está jogando objetos para o alto e que possivelmente irá se aproximar para pedir algum trocado? Pois bem, é a partir de uma cena cotidiana como essa que proponho uma reflexão sobre o trabalho e seu sentido em nossas vidas.

Para Ribeiro, Silva e Vieira (2013), o trabalho faz parte da condição humana desde os prelúdios da humanidade e por meio dele é que os homens das cavernas se organizavam para garantir o alimento e a sobrevivência de suas proles.

 Ao longo da história, outros sentidos e significados foram incorporados a esse ofício e podemos afirmar, sem medo de errar, que o trabalho é o que movimenta o homem, transforma-o e atende suas necessidades. É parte da nossa condição humana, responsável pela construção da nossa subjetividade e equilíbrio psíquico. E porque não nos ancorar em Freud (1974) quando sabiamente afirmou:

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão fortemente à realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana […] como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial […]. (FREUD, 1974, p. 99).

Eu particularmente compreendo o trabalho como a forma mais eficaz de se colocar em rede, no sentido mais social da palavra. É a representação concreta das nossas capacidades físicas, intelectuais, criativas e transformadoras. Talvez isso nos explique o porquê de sua ausência nos causar tristeza e sensação de impotência, ou então, as razões pelas quais as violências nos contextos laborais nos impliquem tão profundamente.

Bem, após este breve aparato sobre o trabalho e seu sentido, retomo a cena cotidiana citada no início deste texto e me questiono se o que os malabares fazem no seu dia a dia não seria também um trabalho?

Até pouco tempo, quando me aproximava de um semáforo, intuitivamente fechava os vidros do carro e me colocava a fantasiar o porquê aqueles cidadãos estavam na rua jogando objetos para cima ao invés de estarem trabalhando… tamanha era a minha ignorância e insensibilidade. Entretanto, fui privilegiado com uma experiência recente, a qual faço questão de compartilhar.

Em um determinado dia, que neste momento não me recordo precisamente a data, participei de um encontro organizado pelo Grupo de Trabalho sobre Psicologia Organizacional e do Trabalho – (GTPOT/CRP-MG), do qual sou membro, e estava presente um rapaz jovem, de boa aparência, um pouco tímido, porém com um sorriso gratuito. Para minha surpresa, João era malabarista e exercia seu ofício justamente em um cruzamento da cidade.

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Na ocasião, a proposta do encontro era que João partilhasse a sua forma de trabalho para que posteriormente o grupo fizesse uma discussão acerca dos trabalhos informais, cada vez mais presentes diante de tantas mudanças no cenário nacional. Isso mesmo, a priori, todos nós presentes acreditávamos que esse seria mais um exemplo de uma atividade desenvolvida informalmente.

Lembro-me que mesmo tendo consciência de que o grupo é um espaço para discussões e reflexões sobre psicologia organizacional e do trabalho, ainda não conseguia entender a arte do João como uma fonte de renda, capaz de preencher todos os aspectos de sentido aqui já esboçado. Só que, para o meu fascínio, aquele jovem rapaz, nos surpreendeu tecendo por algumas horas uma bela e admirável aula, de como o trabalho de um artista de rua pode ser tão significativo quanto qualquer outro ofício.

Diante de João, o tabu foi quebrado, o preconceito suprimido, a arte exaltada e o trabalho ressignificado!

O relato do malabarista me levou a refletir o quanto nossos prejulgamentos podem ser danosos, principalmente quando está em jogo a busca por uma evolução sensata do que concebemos ser trabalho, uma que vez que este, sobre toda e qualquer forma, deve ser considerado, respeitado, protegido e admirado.

Por fim, ressalto que, de informal, a atividade de João nada possui, pelo contrário, foi a forma organizada através da qual o artista mostrou que encara seu trabalho, que fez com que esse dia ficasse marcado em nossas memórias, nos permitindo compreender que trabalho é qualquer atividade capaz de produzir algo, transformando e construindo novos sentidos.

E, se algum dos fatos até então não foram suficientes para te levar a um novo movimento de concepção sobre o assunto, gostaria de descrever alguns dos pontos interessantes sobre a arte de João:

  • João constantemente estuda sobre a história circense, berço da arte de rua;
  • A escolha pela cidade onde o trabalho será executado, é dada com base em pesquisa aprofundada sobre a cultura, história, economia, e outros aspectos que se referem ao município selecionado;
  • João organiza suas atividades por meio de planilhas que também o auxiliam na contabilidade financeira;
  • O artista possui registro no MEI (Microempreendedor Individual) e faz o recolhimento previdenciário;
  • João é Técnico em Segurança do trabalho e pretende cursar faculdade de artes cênicas para, em um futuro próximo, também executar seu ofício em outros espaços.

Referências

FREUD, S. O mal- estar na civilização. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1974, v. 21, p. 75-171. (Original publicado em 1930).

RIBEIRO, Luiz Paulo; SILVA, Raquel Miranda da; VIEIRA, Carlos Eduardo Carrusca. Repercussões do trabalho docente para o cotidiano e subjetividade de professoras. Revista Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos – RIEC. Nova Serrana/MG, ano 01, v. 01, maio/agosto, 2013. p. 19-33.

21 Comentários

Welington Publicado em22:15 - 21/06/2018

Ótimo post, pois nos faz refletir sobre uma situação do nosso cotidiano que ou reagimos com desaprovação por julgar aquela pessoa como desocupado ou damos um trocado pois achamos que é caridade.
Há também momentos que agimos por medo e fechamos o vidro, como você disse, mas isso devido a total insegurança que vivemos e como bem sabemos os malandros se aproveitam.
Acredito que muitos trabalham assim nas ruas por opção, como diz o poeta o artista vai onde o povo está. O trabalho do artista de rua e tão digno quanto qualquer outro e é realizado no lugar mais democráticos a rua.

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em15:54 - 22/06/2018

    Olá Welington! Obrigado pela leitura e considerações. O trabalho faz parte de nossa condição humana, e por isso deve ser respeitado, considerado, protegido e admirado, seja em qual for o contexto.

cyntia Paixao Publicado em16:12 - 22/06/2018

Parabéns meu Amigo Thiago!!! Excelente artigo. O trabalho é toda ação que modifica uma realidade, que te transforma e transforma o outro. A noção limitada de trabalho, como algo apenas formal e dentro de padrões, promove a exclusão e a desvalorização do sujeito que está em ação. O trabalho deve ser inclusivo,pois coloca o sujeito trabalhador dentro de grupos, socializa, faz crescer, insere, promove reconhecimento. É no trabalho e com o trabalho que o sujeito se coloca no mundo e deixa sua marca.

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em11:34 - 25/06/2018

    Obrigado minha querida Amiga e Professora Cyntia! Feliz pelo seu comentário, suas considerações enriqueceram ainda mais este texto.

Ivone Castro Publicado em20:48 - 22/06/2018

Excelentes considerações, o trabalho seja ele qual for nos aprimora e nos leva a alcançar a plenitude. Parabéns.

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em11:39 - 25/06/2018

    Obrigado Ivone! Com certeza o trabalho nos movimenta e impulsiona a mudanças transformadoras …

Elane Santos Publicado em10:47 - 01/07/2018

… trabalho, este sim nos mantém conectado com todos de uma forma plena, que nos renova a cada etapa conquistada!!!! Parabéns Thiago, belíssimas considerações! Sucesso!!!

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em20:56 - 08/07/2018

    Obrigado Elane! E que todos nós tenhamos a possibilidade de nos renovar e nos reinventar enquanto sujeitos trabalhadores.

Aniel Silva Publicado em21:57 - 05/07/2018

Meu amigo Thiago! parabéns pelo texto ele nos mostra o quão importante é o trabalho ele nos enobrece, e a importância de entendermos que a vida é assim e não devemos pré julgar ninguém que todo trabalho desde que seja digno, limpo e probo é louvável e que não cabe a ninguém julgar somente respeitar…

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em20:59 - 08/07/2018

    É isso aí Aniel … Respeito à toda e qualquer forma digna de trabalho! Obrigado pelas considerações !

Vanilson Bretas Oliveira Publicado em23:05 - 05/07/2018

Ótima perspectiva! Temos em geral uma dificuldade tremenda em reconhecer em atividades artísticas um “trabalho”. Afinal o trabalhador tem que horário, uniforme, contrato, salário, etc., Acredito que a informalização (existe essa palavra?) que agora vem chegando aos escritórios das grandes empresas, mudará nossa visão. Parabéns pelo artigo! Abração!

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em21:05 - 08/07/2018

    Concordo com você parceiro! Precisamos constantemente desconstruir e construir novas percepções sobre o trabalho, fenômeno esse que perpassa nossa existência. Abraço !

Josiana Publicado em07:42 - 06/07/2018

Ótimo artigo , o trabalho enriquece o sujeito , da sentindo, o faz pertecente de um grupo, estereótipos são criados diante de trabalhos que fogem o padrão acostumado da sociedade.
O trabalho é mais que algumas horas de atividades , exerce significado de realização, um propósito para sujeito, o que fazemos , o que somos e como estamos no mundo.
Parabéns primo pelo belíssimo artigo !

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em21:10 - 08/07/2018

    Muito boa a sua percepção Josiana! É necessário uma quebra nesses estereótipos que impedem a valorização e o respeito por qualquer forma digna de trabalho!!! Obrigado pelas considerações !

Sílvia Publicado em12:29 - 27/07/2018

Excelente texto Thiago. O trabalho do artista geralmente é visto com desvalorização. Mas devemos pensar que a arte é cheia de significados, deve ser respeitada e valorizada como qualquer outra profissão.

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em16:16 - 27/07/2018

    Obrigado Sílvia! Juntos vamos implicando à essa reflexão e valorização do trabalho, nas suas diversas formas de organização.

RENATA COUTO Publicado em11:20 - 05/10/2018

Parabéns Thiago! Ótima reflexão.

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em15:19 - 08/10/2018

    Obrigado Renata! Seja bem vinda ao nosso blog!!!

Amanda Araújo Publicado em05:09 - 16/10/2018

Interessante, e particularmente me leva a pensar na ligação entre trabalho e prazer! Pois, que o trabalho nos edifica, nos trás um lugar, algumas vezes certo status, socialização, prosperidade, isso nos é dito desde criança! Mas quem nos diz que esse mesmo trabalho que nos leva ao sucesso também pode ser prazeiroso!?? Agradavel!? Gostoso de ser executado!?? Pode se dar por outra via, por outro formato, por outra perspectiva? O PRÉ-conceito existe em relação a isso e vem instaurado culturalmente em nossa sociedade capitalista a anos, e muitas vezes nos impede de enxergar varias formas “informais” de trabalho como realmente algo profissional e prazeiroso. Quantas vezes ja passou pela nossa cabeça quando alguém trabalha com algo fora do padrão comum “Fulando não trabalha, brinca” .
E então vem você meu amigo, e maravilhosamente compartilha conosco esse olhar fantástico sobre essa forma de trabalho! Sobre arte!! Sobre como é possível SIM trabalhar com prazer! Ser Feliz no trabalho, seja ele qual for!! E ser reconhecido e respeitado como trabalho rentável!
Gratidão pelo artigo e pela sua visão de mundo!
Um forte abraço!!!!

Anônimo Publicado em22:03 - 07/11/2019

Muito bom parabéns tem muitas pessoas passando pela esta situação trabalha e não é reconhecido , até no meio indústrial etc. Importante é fazer o que nos deixar com um sorriso no rosto .

    Thiago Casemiro Mendes Publicado em10:43 - 11/11/2019

    Obrigado! Agradecemos a visita ao nosso blog . Volte sempre!

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