O trabalho imita a arte?

O trabalho imita a arte?

Nos dias de hoje, praticamente não produzimos nada para nosso próprio sustento. Moro em apartamento e não tenho um horta para cultivar meus alimentos no quintal. Quando algo quebra por aqui, ou compro outro ou alguém vem consertar. Desvantagens da vida moderna. Realizo muito pouco trabalho doméstico nesse sentido. Tudo terceirizado.

Desde que o homem é homem, ele produz coisas para si e para os outros. Não sei quem foi o primeiro homem da história da humanidade a trabalhar, mas sei que muitos outros vieram depois construindo casas, carros, móveis, plantando seus alimentos e executando tarefas variadas para garantir seu sustento, seu conforto e dos seus próximos. O ser humano vem há muito criando coisas belas e úteis, facilitando sua vida, dando seu jeito de sobreviver e se colocar no mundo.

Ao longo do tempo, com mudanças culturais, revoluções industriais, tecnológicas, psicológicas e outras mais, trabalho e produto foram se distanciando, tomando formas variadas por meio de relações humanas de escravidão, dependências e emprego remunerado como o conhecemos hoje. Muitas vezes, hoje em dia, temos a impressão de que só trabalhamos para os outros.

Após essa introdução, prometo estudar melhor as origens do trabalho para não fazer feio por aí. No entanto, nesse momento, me cabe ressaltar meu ponto de discussão. Hoje falo um pouco sobre a comparação entre trabalho e arte.

Inicialmente, para que possamos discutir psicologia, arte e trabalho, devemos ter em mente que, este último, é mais do que um emprego formal ou o que costumamos chamar de trabalho. Ele é atividade, realizada ou não, produção, ação para transformar algo, para construir o meio e elaborar novos sentidos.¹

Como diz Yves Clot, citado por Lima (2011), atividade é a “produção de um meio de objetos materiais ou simbólicos e de relações humanas ou mais exatamente de recriação de um meio de vida” (LIMA, p.244, 2011).

Por mais que seja o ideal refletirmos sob esse ponto de vista sobre o trabalho, é difícil deslocar um sentido negativo ou obrigatório impregnado em nós na figura do emprego.² É muito comum estabelecermos uma separação radical entre o substantivo trabalho e adjetivos bacanas como: criativo, espontâneo, bonito ou magnífico. Mas vamos tentar.

Clot (2011), ao discutir a obra de Vygotsky, reflete sobre sua análise da arte e diz que esta última “é uma transformação de nossos afetos, uma via para viver outros afetos e assim dar uma forma ao inacabado” (CLOT, p.78, 2011). O autor reforça que o desenvolvimento da arte ao longo da história é o desenvolvimento de uma ferramenta da cultura de ação do indivíduo sobre si mesmo. Ao realiza-la, estamos desenvolvendo nosso inconsciente, nos aproximando de nossos afetos e fazendo um exercício para nossas emoções, sendo essa sua função psicológica.

Desse modo, Clot nos traz um sentido muito interessante da arte, como criação e meio privilegiado de influenciarmos nossa história subjetiva. A arte nos afeta, nos transporta, nos movimenta internamente, muitas ou quase todas as vezes, de um modo fora de nosso alcance.

Clot (2011) acredita que o trabalho também pode fazer isso, que este também nos afeta, nos transporta e nos diminui, produzindo conflitos inconscientes que interferem em toda a nossa estrutura. O trabalho nesse sentido executa algo parecido com a arte, sendo uma ação sobre nós mesmos e dando forma ao inacabado.

Ao citar R. Bresson, o autor comenta que “a hostilidade em relação à arte é uma hostilidade contra o novo, o imprevisto” (CLOT, p.79, 2011). Sim, o elemento surpresa sempre nos assusta e J. L. Moreno, criador do Psicodrama, já dizia que, se existe alguma coisa para a qual o ser humano está menos preparado, esta é a “surpresa”. Talvez daí os sentimentos contraditórios que nutrimos em relação ao trabalho (Clot, 2011).

Sempre considerei a arte a genuína expressão da experiência de ser humano. Seja através de palavras, de gestos, de traços em um papel, de tintas em uma tela ou de acordes em um piano, é possível reconhecer senão nossa personalidade, pelo menos traços originais que expressam nossa capacidade de sentir e nos emocionar.

Pessoalmente, sempre desenhei por prazer. Fiz algumas histórias em quadrinhos quando criança, criei personagens, arrisquei algumas caricaturas, desenhos de observação de ambientes ou pessoas, e até mesmo dei meus pulinhos na pintura.

Já na música, o que começou como hobby, tornou-se quase um segundo emprego nos dias de hoje. Como músico, convivo com uma mistura interessante de trabalho e emprego, dever e prazer, criação e repetição.

Na música, assim como no desenho, é fácil localizar a inspiração, o elemento criador, a novidade ali produzida naquele momento, a arte. Posso dizer que, como psicólogo também, quando faço um atendimento clínico satisfatório, considero que fiz um bom trabalho, me sinto orgulhoso, produzi uma pequena e momentânea obra de arte. Trabalho e arte se aproximam.

Hoje considero também o trabalho uma expressão genuína da natureza humana e tenho certeza que todos nós construímos algumas obra primas durante a vida e pequenas artes diariamente, sem nos darmos conta disso. Gostamos do trabalho bem feito, que nos envolve, que nos representa, no qual nos enxergamos e vemos ali nosso produto. Talvez seja difícil comparar arte e trabalho em termos de beleza, por exemplo. Possuem utilidades e objetivos distintos, porém com funções psicológicas semelhantes.

Nossa saúde depende de nossa capacidade de criar um contexto para viver, de exercermos nosso poder de agir sobre o mundo e sobre nós mesmos (Clot, 2011). A arte e o trabalho podem ser caminhos para isso.

¹ Leia mais sobre as perspectivas clínicas do trabalho aqui e sobre a noção de trabalho aqui.

² Sobre a representação negativa do trabalho, recomendo o texto “Mal-estar no trabalho: do sofrimento ao poder de agir” de Pedro F. Bendassolli, Revista Mal-estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. X – No 1 – p.63 – 98 – mar/2011.

Referências

CLOT, Yves. Clínica do trabalho e clínica da atividade in BENDASSOLLI, Pedro F., SOBOLL, Lis Andrea P., organizadores. Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade. São Paulo: Atlas, 2011.

CLOT, Yves. Vygotski: para além da Psicologia Cognitiva. Pro-Posições, [S.l.], v. 17, n. 2, p. 19-30, fev. 2016.

LIMA, Maria Elizabeth Antunes. Abordagens clínicas e saúde mental no trabalho in BENDASSOLLI, Pedro F., SOBOLL, Lis Andrea P., organizadores. Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade. São Paulo: Atlas, 2011.

VYGOTSKI, L.S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (1926).

Deixe uma resposta