Falar sobre qualidade de vida parece algo quase trivial, afinal, todo mundo possui um imaginário do que seria qualidade de vida: ter uma boa moradia, boa saúde, um bom trabalho, bons relacionamentos… O adjetivo “bom” aparece antes de todos os substantivos que podemos imaginar quando pensamos em qualidade de vida. Mas, o que seria “bom”?
No dicionário, bom se refere àquilo “que corresponde plenamente ao que é exigido, desejado ou esperado quanto à sua natureza, adequação, função, eficácia, funcionamento etc.”. Já em relação à “qualidade”, encontramos diversas significações, mas a que mais se aproxima da lógica discutida aqui, é referida ao “grau, negativo ou positivo, de excelência”.
Diante esses dois significados, pensar em qualidade de vida exige discutir sobre a “excelência associada à natureza, adequação, função, eficácia, funcionamento etc.”, ou seja, se torna algo complexo, pois se refere a um conjunto de elementos interligador e que se multideterminam.
Quando englobamos o trabalho na qualidade de vida, a complexidade se torna ainda maior, pois se trata de refletir sobre a excelência associada à natureza, adequação, função, eficácia, funcionamento etc., dentro da lógica capitalista de produção, que se baseia, eminentemente, na lucratividade. Trata-se de pensar a qualidade de vida em uma relação de poder desigual, dentro do contexto do trabalho alienado, sem sentido, o que se apresenta “quase” (ou com certeza) como um paradoxo.
Como ter qualidade de vida no trabalho sendo, o trabalho alienado, desprovido de sentido? De que excelência estamos falamos quando nos referimos à qualidade de vida no trabalho, no cenário contemporâneo de produção?
Lima (1996), em seu livro Os equívocos da excelência, nos ajuda a refletir sobre a excelência no contexto capitalista. A autora faz uma critica à excelência imposta ao trabalhador, principalmente após o processo de Reestruturação Produtiva. Esse processo tem como referência as décadas de 60 e 70, sendo uma resposta à crise que se instaura no sistema produtivo da época.
A Reestruturação Produtiva apresentou um novo olhar sobre as organizações que extrapolou o processo produtivo em si. Além do uso de novas tecnologias, esse processo ampliou as estratégias individuais de gestão de pessoas, que passaram a atingir a subjetividade do trabalhador através de mecanismos perversos de sedução.
A autora alega que a excelência passa a ser uma resposta do trabalhador ao capitalismo, em prol de um reconhecimento distorcido do tipo “eu sou o melhor”. O trabalhador torna-se o empreendedor de si mesmo, o “eu S.A.”, e, com isso, o capitalismo o impõe a responsabilidade pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso.
É nesse cenário conturbado que surge o conceito de qualidade de vida no trabalho. Nessa época, o foco na qualidade total, que tinha como objetivo ampliar o processo produtivo e otimizar a produção, inspira a discussão sobre a qualidade de vida no trabalho, tendo como objetivo o trabalhador. Mas, em uma análise mais aprofundada, podemos perceber que esse foco muitas vezes foi distorcido, sendo utilizado, inclusive, como mais uma estratégia de sedução.
Para suscitar um debate sobre esse tema, principalmente em seus aspectos contraditórios, utilizaremos a discussão apresentada no livro Dominação e Resistência no Contexto Trabalho-Saúde, especificamente no artigo “Qualidade de vida no trabalho: a ótica da reestruturação corpo-mente e o olhar dos trabalhadores” (FERREIRA et al, 2011). Neste último, o autor apresenta as duas principais tendências contemporâneas de abordagem da qualidade de vida no trabalho, que são, inclusive, contraditórias: a que se baseia na ótica da reestruturação corpo-mente e a baseada no olhar dos trabalhadores.
Ferreira et al (2011) apresenta que quando se fala em qualidade de vida no trabalho, existe uma discrepância entre o que é oferecido pelas empresas e o que deseja o trabalhador. Ou seja, quando analisamos a qualidade de vida no trabalho, existe um antagonismo de forças que não respondem aos mesmos interesses.
De um lado encontra-se a empresa e seu ideário de lucratividade, do outro encontra-se o trabalhador na busca de um ambiente de trabalho minimamente saudável. A qualidade de vida no trabalho passa, dessa forma, pela análise das relações de poder existentes entre trabalhadores e os empregadores e necessariamente pela análise da intencionalidade quando se institui um programa dessa natureza.
Em seu artigo, Ferreira et al (2011) apresenta um estudo realizado com o objetivo de identificar o que as empresas têm feito em termos de qualidade de vida no Brasil. Esse estudo foi baseado num levantamento feito no Google e que permitiu identificar 40 empresas que atuam no campo da qualidade de vida no trabalho, sendo a maioria delas na região sudeste.
Segundo o autor, essas empresas oferecem uma espécie de “cardápio” com diversos serviços e atividades diferentes, que vão desde cursos de gerenciamento do estresse, testes psicológicos, psicoterapia breve, terapia floral à orientação nutricional, atividades culturais e de lazer, programas de antitabagismo, de combate ao sedentarismo, coaching, palestras educativas, planejamento financeiro etc.
Esse cardápio, o autor denomina de “ofurô corporativo”, que tem o objetivo de proporcionar ao trabalhador um relaxamento rápido, mas muito provisório. O modelo segue a lógica da “estruturação corpo-mente” e acaba sendo o modelo hegemônico.
O grande problema de programas que tomam como base esse modelo é que o foco está na resistência física e mental dos trabalhadores e, com isso, busca a “resiliência” individual onde o trabalhador “dobra, mas não quebra”. As dificuldades são compreendidas como individuais, e os problemas na organização do trabalho são secundários.
Um contraponto a essa visão hegemônica é pensar a “qualidade de vida sob a ótica dos trabalhadores”. Como o próprio nome nos diz, essa visão se refere à concepção que os trabalhadores têm da qualidade de vida no trabalho. Isso significa escutar suas demandas na tentativa de compreender o que eles pensam sobre o que vem a ser qualidade de vida no trabalho, e com isso buscar uma aproximação entre a expectativa e a realidade.
A excelência assim é vista de outra maneira, ela passa de uma questão associada ao trabalhador para uma excelência do trabalho, ou seja, na possibilidade que o trabalho tem de ser fonte de sentido e, consequentemente, de saúde.
Ferreira et al (2011) apresenta, ainda, os resultados de uma pesquisa realizada por ele e colaboradores em instituições públicas no Brasil, que teve o objetivo de, a partir do olhar dos trabalhadores, entender o que é qualidade de vida no trabalho. Essa pesquisa apontou que esses trabalhadores a associam a cinco grupos de fatores: condições de trabalho, organização do trabalho, relações sócio-profissionais de trabalho, reconhecimento e crescimento profissional e elo trabalho e vida social.
A complexidade na análise desses fatores extrapola o adjetivo bom discutido anteriormente. A discussão se torna ainda mais complexa, pois trata-se de um questionamento das relações inerentes ao processo produtivo capitalista, o que é quase um questionamento existencial.
Se, diante o exposto, vocês me perguntarem se é possível ter qualidade de vida no trabalho no contexto capitalista contemporâneo, eu responderia que não. Mas, como profissional que trabalha com as clínicas do trabalho e com intervenções em ambientes laborais, respondo que, apesar de ser um grande desafio, é possível sim.
Refletir sobre qualidade de vida no trabalho requer um compromisso ético que extrapola uma reflexão sobre o que vem a ser qualidade de vida, bem-estar, etc. Trata-se de iniciar uma discussão ética sobre os processos produtivos e nosso posicionamento profissional diante deles.
É necessário uma análise das relações de poder que organizam os processos produtivos e minimamente um desenvolvimento de estratégias de enfrentamento dos mecanismos de manipulação dos trabalhadores, para não sermos apenas reprodutores do sistema e de relações perversas de poder. A constituição de espaços de escuta e o fortalecimento dos coletivos de trabalhadores minimizam os impactos estruturais impostos pelo capitalismo, mas não sanam o problema. Silenciar os trabalhadores é silenciar a nós mesmos, afinal: Somos todos trabalhadores!
Referências:
LIMA, M. E A. Os Equívocos da Excelência: as novas formas de sedução na empresa. Petrópolis> Vozes, 1996.
FERREIRA, M.C., Almeida, C.P., Guimarães, M.C., & Wargas, R.D. (2011). Qualidade de Vida no Trabalho: a ótica da restauração corpo-mente e o olhar dos trabalhadores. In J.N.G. Araújo, C.P. Almeida, & A.M. Mendes. (Orgs.), Dominação e Resistência no Contexto Trabalho-Saúde (pp. 159-182). São Paulo: Editora Makenzie.
Para Saber mais:
Ferreira, M. C. Qualidade de Vida no Trabalho: Uma Abordagem Centrada no Olhar dos Trabalhadores Brasília, DF : Edições Ler, Pensar, Agir, 2011. disponível em: http://ergopublic.com.br/arquivos/1359392512.36-arquivo.pdf
Qualidade de Vida no Trabalho: Diagnóstico Politica e Programa de Qualidade de Vida no Trabalho com o professor da UnB, Mário Cesar – https://www.youtube.com/watch?v=QQVPmvOd4nM